JOÃO GRANCHO, PRESIDENTE
DA ANP, EM ENTREVISTA
A Ordem que faz falta

A criação da Ordem dos Professores é um objectivo que a Associação Nacional de Professores persegue há algum tempo. Num ano em que o Ministério da Educação provocou alterações na dinâmica das escolas e nos concursos de professores, João Grancho, presidente da ANP, apresenta os pontos de vista que a associação que representa defende.
Em entrevista ao Ensino Magazine fala ainda dos princípios orientadores para a construção do estatuto da carreira docente e da participação da ANP como parceiro europeu da educação.
Nas jornadas Pedagógicas promovidas pela ANP, em Castelo Branco, lançou os princípios orientadores para a construção do Estatuto Profissional Docente. Um desses princípios passa pela exigência de um segundo ciclo de estudos para quem quiser abraçar a profissão. Porquê esta exigência?
Esse princípio, visto à luz do Processo de Bolonha, assenta na nossa convicção de que, seja qual for o nível de ensino em que se venha a exercer a profissão, a qualificação para esse exercício tem de assentar numa formação sólida, diversificada, multidisciplinar e acima de tudo de elevado rigor científico e pedagógico. Por isso, não faz sentido acolher uma formação “minor” para o pré-escolar e 1º ciclo do ensino básico (1º ciclo de estudos superiores seguido de uma qualificação profissional) e uma formação “major” para os outros níveis (no plano de um 2º ciclo de estudos superiores) assente numa suposta necessidade de reforço da qualificação científica exigida para estes últimos . E aqui não está apenas presente, embora não seja de o ignorar, uma preocupação de diferenciação estatutária profissional que tal percepção possa implicar.
No entanto apraz-me registar a concretização de um princípio basilar qualificante da profissão docente que a Associação Nacional de Professores vem defendendo há já alguns anos e que se traduz no reconhecimento de que para o exercício da profissão são necessários conhecimentos e competências específicas. Logo, só poderá exercer a profissão quem estiver preparado para tal, pondo termo à invasão do ensino por “indiferenciados”.
No mesmo conjunto de princípios sobressai a necessidade de ser criado um Código Deontológico da Profissão. Isso significa que a classe docente necessita de regras claras nessa matéria?
Esse Código Deontológico decorre naturalmente do elevado grau de exigência, de responsabilidades e expectativas que a docência implica e gera. Daí a necessidade de constituir um quadro de referência dos conhecimentos, das competências, da qualificação das práticas, dos valores e dos princípios éticos inerentes ao exercício da profissão.
É manifestamente insuficiente confinar tudo, como acontece com o actual estatuto da carreira docente, a um alinhamento de direitos e de deveres. E é assim porque Ser Professor significa, entre muitas outras coisas, assumir um mandato social impregnado de uma forte dimensão ética e de elevados “standards” de rigor e de competência, só exigíveis às profissões que interferem directamente com a “modulação” da matéria humana como é caso da docência que apela a um sentido profissional e humano que suportará o desenvolvimento social, físico, intelectual, espiritual, cultural, moral e emocional de crianças e jovens.
A auto-regulação da profissão A auto-regulação docente é outro dos princípios enunciados. A criação de uma Ordem de Professores poderia exercer essa função?
A experiência demonstra que a mera regulação administrativa da profissão não conseguiu criar um sentido profissional docente homogéneo. Quero com isto dizer que a resposta à questão sobre “o que significa ser professor” não pode decorrer de uma qualquer norma a que cada um retira o que parece ser-lhe aplicável individualmente. É preciso que a própria classe defina, construa, acolha e assuma colectivamente os referenciais comuns, unos e distintivos da sua profissão. Isso só é possível pela via de uma auto-regulação, assente em elevados padrões de exigência, a começar na formação inicial, passando pela avaliação e sempre presente nas práticas.
À Ordem dos Professores, enquanto instância verdadeiramente afirmadora de um sentido identitário do corpo docente caberá naturalmente essa função.
Desde a primeira hora a que a criação da Ordem de Professores é um objectivo perseguido pela ANP. A sua concretização está, agora, mais perto ou ainda há um longo caminho a percorrer?
Hoje podemos afirmar que o caminho para a criação da Ordem dos Professores tem muito menos escolhos e já começa a haver uma clarificação do que pode vir a representar. Há no entanto que retirar algum ruído introduzido por organizações profissionais de cariz sindical que na ânsia de jogar em todos os tabuleiros – o associativo em sentido estrito, o sindical e o de tendente-a-ordem - desconstroem os fundamentos, o sentido e o alcance de uma Ordem. De todo o modo são notórios os avanços conseguidos e estou convicto de que é já uma questão incontornável para os docentes e para o próprio poder.
E o desejo dos professores portugueses aponta para a criação da Ordem?
Numa abordagem ainda empírica, com base no que se vai ouvindo de muitos professores, parece legítimo retirar que é, pelo menos, algo que é visto com bons olhos não sendo perceptível uma rejeição desse propósito. Mas estou convicto de que com o avançar da discussão que permita perceber melhor o verdadeiro sentido e alcance de uma Ordem, a resistência que possa existir será afastada.
Recentemente a Associação lançou um inquérito nacional junto dos professores. Qual o objectivo desta iniciativa?
O objectivo é o de inquirir os Educadores e Professores sobre questões essenciais da sua profissionalidade. A motivação assentou na percepção de que, para além dos estudos e das investigações muito lacunares que se conhecem, era necessário ir muito mais além, isto é à totalidade do docente. Encontramos um parceiro, o CEDER do Instituto Politécnico de Castelo Branco, que aceitou o desafio e colocou todo o seu know how científico e técnico ao serviço deste propósito. Estou plenamente convicto de que os resultados deste inquérito virão a constituir um marco de grande referência sobre a profissionalidade docente e que nos ajudará a responder a muitas questões que hoje se colocam a propósito dos professores e da Educação. Os óptimos indicadores de retorno que temos neste momento mais alimentam esta convicção
No ano lectivo em vigor surgiram muitas novidades, como as aulas de substituição. Que avaliação faz de todo este processo?
Desde o primeiro momento demos nota de que as novidades trazidas por esta equipa ministerial de entre as quais se destacam os prolongamentos de horário e as aulas de substituição careciam de uma abordagem mais consistente e integrada. No primeiro caso mantemos a convicção de que não cabe aos docentes o preenchimento desse papel, antes devia constituir-se como uma resposta da comunidade e com recurso ao que designamos por técnicos sociais de educação. No segundo caso sempre entendemos que era responsabilidade da escola encontrar uma resposta às ausências dos professores, mas respeitando o que o estatuto consigna quanto às aulas de substituição. Os reequilíbrios introduzidos através de orientações posteriores permitiram ultrapassar algum mal-estar que essas medidas provocaram.
E no que respeita à colocação de professores, por um período mínimo de três anos?
A nossa proposta sobre o regime de concursos foi a única que defendia um modelo diferente do que veio a ter acolhimento legal. No nosso entender a questão da temporalidade dos cursos não constitui o cerne do problema, tão pouco será um factor com especial implicação no sucesso dos alunos. Para nós é mais importante promover a fixação do que combater a mobilidade. E promover a fixação é entender que é preciso diminuir a dimensão dos quadros de zona pedagógica, é procurar perceber os fluxos demográficos, é racionalizar a rede escolar e a rede de oferta educativa, é adequar a oferta de formação inicial de professores às reais necessidades do sistema, é criar condições efectivas de fixação dos professores. É ilusório pensar-se que ao fixar fisicamente o professor se está, simultaneamente, a fixá-lo a uma comunidade escolar concreta, distinta e distante da sua comunidade de identificação pessoal. Note-se que esta medida abrangerá, principalmente, docentes dos quadros, com bastantes anos de serviço e que já fizeram opções de fixação familiar há muito tempo. Iremos ter, infelizmente, situações muito dramáticas a esse nível. Oxalá me engane.
Sente que há descontentamento e desmotivação por parte da classe docente portuguesa?
Essa é uma das questões que esperamos ver respondida através do inquérito que lançamos. É certo que todos temos essa percepção, embora nos escapem os seus reais motivos. No entanto, parece claro que três décadas de contínuas transformações na Educação, em que as regras do jogo vão sendo alteradas sistematicamente têm criado estados críticos de motivação e promovido um certo alheamento, que não desinteresse, profissional. Veja só o que aconteceu nos últimos seis anos com os concursos, com a revisão curricular, com o sistema de gestão das escolas, com a progressão na carreira, com os vencimentos, com a crescente desautorização dos professores, com a indisciplina, etc.
Por certo o que se impõe como prioritário não é a fixação dos docentes, mas antes a fixação do nosso modelo educativo e das políticas que o sustentam.
Outro contributo significativo para a estimulação de um sentir profissional mais positivo seria por certo abandonar esta lógica de barricadas entre docentes e Ministério. Era bem mais útil e produtivo estarmos todos do mesmo lado.
A Associação Nacional de Professores vai colocar em funcionamento até ao final de Maio de 2006, uma linha de apoio directo aos professores. O que é que se pretende com este serviço?
Esta linha será a resposta da Associação Nacional de Professores a todos os docentes, associados ou não, que surge depois de se ter constatado que um número significativo de colegas que nos contactam vive situações de stress, angústia, sentimentos de incapacidade de acção perante problemas e situações decorrentes do exercício da profissão, de entre as quais se destacam notoriamente a indisciplina dos alunos, a coacção psicológica e física por alunos e pais, insegurança pessoal e profissional, etc.
Significa que continua a haver violência, nas suas mais variadas formas, dentro da escola e para com os docentes?
A existência de violência nas escolas e nas suas imediações é um facto indesmentível. Não quero ser alarmista, tão só pretendo que em relação a esta realidade se actue preventivamente e já, antes que seja tarde. Infelizmente parece que nada aprendemos com os erros e com as fatalidades que já ocorreram no nosso país por não se ter querido reconhecer o que está mal. Veja-se o que sucedeu na Casa Pia, com as pontes, só para citar dois exemplos. Portanto, há que actuar e não permitir que a sociedade lentamente vá aceitando a ideia de que a violência é um facto natural e normal, como o será também uma ou outra agressão de um aluno a um professor, entre alunos, de alunos ao pessoal administrativo, de professores a alunos, o transporte de droga para dentro das escolas, etc. Não podemos aceitar isso, seja por que motivo for. É um imperativo colectivo.
Em termos internacionais a ANP faz parte da CESI, que tem sede em Bruxelas, e que é uma das entidades escutadas sobre política educativa na Comunidade Europeia. Qual tem sido a participação da ANP nesse organismo?
A Associação Nacional de Professores será por certo a organização profissional de docentes neste país que não dispondo os recursos humanos e financeiros de outras, que mais insistentemente tem contribuído para a construção de uma imagem mais positiva e mais qualificada da Educação, dos professores e dos alunos. Não nos importa a linguagem e argumentação estafada tão em voga na Educação. É necessário abrir novos horizontes, novos espaços de afirmação individual e colectiva da classe docente, seja a nível interno, seja a nível internacional.
A CESI é a nossa porta para a Europa e para os órgãos decisores da União Europeia. É também aí que actuamos e movidos por um propósito ambicioso – a consagração de uma “Carta do Professor Europeu” que consagre a profissão docente como das mais decisivas para um desenvolvimento sustentado da Europa no plano cultural, cientifico, social e económico.
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