ROGÉRIO ALVES,
BASTONÁRIO DA ORDEM DOS ADVOGADOS, EM ENTREVISTA
Direito está aquém
dos mínimos
Rogério Alves considera que o «número de advogados é elevado para o País que temos» e critica a forma «atrabiliária» como as pessoas optam pela advocacia. O novo Bastonário sustenta que é preciso «aumentar a produtividade do meio judiciário», defende a modificação substancial das leis do processo civil e penal e lança um aviso aos políticos para que adoptem uma estratégia de «curto, médio e longo prazo» para reformar o sistema de Justiça.
Ganhou notoriedade junto da opinião pública quando nos ecrãs televisivos explicou com uma linguagem acessível às massas a complexidade jurídica do caso Casa Pia. Sente que contribuiu para desmistificar a imagem associada a uma «caixa negra» impenetrável que os portugueses tinham da Justiça?
Creio que contribuí para que as pessoas entendessem melhor o que se estava a passar, descodificando a linguagem habitualmente inacessível com que se fala da Justiça, tornando com isso os factos mais perceptíveis e compreensíveis. O facto de conseguir que os espectadores ou quaisquer terceiros percebam melhor os fenómenos que lhes são narrados, ajuda a criar uma opinião pública mais interessada por aquilo que merece interesse e uma consciência cívica melhor estruturada, capaz de impor aos poderes que não prescindam de reformar a Justiça. E essa exigência, mesmo de quem não é do meio judiciário, diria mesmo, sobretudo desses, analisa-se num enorme contributo para a reforma da Justiça.
O caso de pedofilia suscitou e suscita as atenções gerais, mas muitos outros casos, não tão mediáticos, circulam todos os dias nos tribunais portugueses. Como é que se inverte a endémica morosidade processual da Justiça e, em paralelo, um certo sentimento de impunidade que perpassa na sociedade?
Inverte-se essa tendência investindo mais na Justiça, sobretudo em meios auxiliares a quem julga e a quem investiga. Tem de aumentar a produtividade do meio judiciário, que trabalha muito mais do que aquilo que produz. Não podemos consumir duas horas em audiência para escrever duas folhas, que se obtém a partir de um ditado. Temos de pensar em meios mais expeditos de apurar e fixar a matéria de facto, mormente com recurso à gravação
áudio e vídeo. A era dos ditados tem de acabar. Por outro lado e como tenho insistido frequentes vezes e decorre do que disse antes, temos de reformar as nossas leis de processo civil e penal, tornando-as menos complicadas, mais despidas de rituais inúteis e verdadeiramente colocadas ao serviço de uma rápida decisão.
Ainda faz sentido dizer que existe uma Justiça para ricos e para pobres?
A expressão é ambígua e perigosa e explico-lhe porquê. Os nossos juízes tratam toda a gente por igual, aplicam a lei da mesma forma, não sobram quanto a isso qualquer tipo de dúvidas. Agora, e como é óbvio, pessoas com maior capacidade económica têm, em princípio, acesso a melhor e mais regular aconselhamento jurídico e, de igual modo, a possibilidade de conhecer e utilizar melhor os meios de defesa à sua disposição. Daí a importância de construir um eficaz modelo de apoio judiciário, que ajude a nivelar por cima a defesa e patrocínio de todos os cidadãos, sem excepção nem discriminação.
Entristece-o ver colegas de profissão e inscritos na Ordem travarem-se de razões em pleno tribunal?
Vamos ver. Se for uma polémica saudável, intensa mas correcta, vibrante, mas educada, não vislumbro problema algum. Outra coisa será uma peleja indelicada, onde se viole o dever recíproco de urbanidade em maior ou menor tom. Aí sim haverá lugar a tristeza e reprovação.
A palavra «choque» (fiscal, tecnológico, etc) entrou em definitivo no léxico político. Acho que faz falta um «choque judicial» e de mentalidades?
Creio acima de tudo que é preciso a coragem de enfrentar os problemas, sabendo que há muitas coisas que têm de ser mudadas. Refiro-me, nomeadamente, a leis, institutos e práticas muito entranhadas na nossa tradição jurídica, que temos de ter a coragem de alterar. Se isso provocar choque, ou resultar de um choque, então que venha o choque. Mas o choque é algo de efémero e a reforma da Justiça carece de um pensamento estratégico de curto, médio e longo prazo. Por isso temos de ir além das ondas de choque e fazer um trabalho planeado, consistente, sem sobressaltos.
O fim antecipado da legislatura adiou reformas no sistema introduzidas pelo Executivo em funções. Pergunto-lhe se acha que continuamos a perder tempo precioso para atacar os problemas e, já agora, que reformas é que elencaria como prioritárias e urgentes?
Estamos de facto a perder tempo. Quanto às reformas e para além das reformas das leis processuais a que aludi, vejo como urgente a alteração da reforma da acção executiva e do código das custas, a par da urgente necessidade de estabelecer as regras do acesso ao direito.
Disse que «o prestígio do advogado está abaixo do merecido». A que se deve esta situação e, já agora, se pensa que as novas gerações de causídicos vão trazer uma renovação e uma nova atitude numa classe em que os jovens são cada vez em maior número?
As pessoas contam tantas lendas sobre advogados, que passaram a confundi-las com a História. Por outro lado, o advogado é muitas vezes o interlocutor único do cidadão, face a um sistema que não funciona. O advogado torna-se assim o alvo de queixas e críticas que não merece, sem embargo de, por vezes, também o advogado ser passível de critica. Acredito que a jovem advocacia poderá manter o trajecto de crescimento do prestígio da advocacia, que, apesar de tudo, se tem vindo a verificar.
Concluiu o seu curso numa instituição privada, a Universidade Católica. Como avalia a qualidade dos cursos de Direito em Portugal, no sector público e privado?
Não conheço suficientemente bem os vários cursos de Direito existentes em Portugal. Parece-me, todavia, que alguns estão verdadeiramente aquém dos mínimos.
Há advogados em excesso para o País que temos? Como é que explica que muitas pessoas com formação jurídica acabem, por exemplo, em jornalistas?
O número de advogados é elevado para o País que temos, quer pela quantidade em si mesma, quer pela circunstância de muito do trabalho que deveria ser feito exclusivamente por advogados estar cometido a terceiros. E isto, como é óbvio, causa acrescidas dificuldades. A profissão como qualquer outra precisa de ter trabalho para sobreviver. Por isso não é de estranhar que muitos licenciados em Direito optem por outras carreiras. Aliás o problema do elevado número de advogados, reside, na base, da existência de um grande número de licenciados em Direito, a par da forma algo atrabiliária como as pessoas optam pela advocacia, algumas vezes sem qualquer outro motivo que não o de ser uma actividade de acesso mais fácil. Ora isto é de todo desaconselhável para o próprio e para a profissão.
Nuno Dias da Silva
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