Director: João Ruivo    Publicação Mensal    Ano VIII    Nº86    Abril 2005

Entrevista

LÍDIA JORGE, ESCRITORA, EM ENTREVISTA AO ENSINO MAGAZINE

"Sistema educativo precisa 
de uma revolução cultural"

Reagindo com contundência ao actual estado do ensino em Portugal, Lídia Jorge afirma que existem universidades «sem espírito académico» e que formam «contingentes de alunos impreparados». A escritora considera um erro «provincializar» as instituições universitárias, defende a adopção de uma «cultura empresarial» para os estabelecimentos de ensino e critica a «preguiça extraordinária» que grassa nos centros de criação do saber. A autora de «A costa dos murmúrios» apela para que o desenvolvimento do País assente numa cultura de progresso como desígnio nacional, depois do esboroar do sonho imperial e do fim provocado pelo efeito da «anestesia» que constituiu a adesão à União Europeia.

Diz-se frequentemente que os portugueses são ciclotímicos: oscilam entre a depressão e a euforia. Que apreciação faz do estado actual da nação?

Creio que os portugueses estão a debater-se com um problema de redimensionamento. Estamos na fase de olhar para o espelho e constatar que nos vemos pior do que realmente somos. Em termos de auto-estima, os portugueses estão na zona do nada.

O que é que aconteceu para chegarmos a este ponto?

Acreditámos que já fazíamos parte dos países representativos da modernidade, sem termos feito um grande esforço para lá chegar. Foi quase como um milagre da instauração da democracia, quando na verdade não avançámos significativamente no progresso — e em particular na componente do conhecimento. Portugal necessita de enveredar por uma cultura de progresso, acompanhada por uma visão humanista, fixando metas e assumindo esse desiderato como um desígnio nacional.

Depois do sonho imperial e dos fundos da União Europeia (U.E.) que se vão esgotando, o caminho da cultura do progresso é uma inevitabilidade?

A quixotesca aventura imperial foi um desígnio coerente, mas que depois se tornou desadequado. Depois do apodrecimento do mito imperial, surgiu a U.E. que através dos fundos comunitários canalizados transmitiu-nos a sensação que tínhamos enriquecido sem esforço e sem proceder a reformas difíceis. Foi um período anestesiante e que travou o nosso progresso.

O alargamento da Europa a 25 países complica o papel de um País periférico como o nosso?

O alargamento comporta, simultaneamente, riscos e estímulos. Temos de olhar para o caminho que os países do leste fizeram até atingir o restrito clube europeu e as mais-valias que têm relativamente a nós em aspectos cruciais, como a formação e a qualificação. 

Qual é a receita para inverter o plano inclinado para que temos vindo a resvalar?

Começo a vislumbrar que de dia para dia o humor do País melhora. Somos pessoas que por natureza só nos mostramos em momentos agudos e creio que psicologicamente perdemos 15 anos das nossas vidas — agora, começa a instalar-se um estado de estoicismo em Portugal, em que os nossos cidadãos interiorizam que se os sacrifícios que lhes são solicitados têm legitimidade e razão de ser o seu empenho valerá a pena, tudo em nome do conceito de justiça relativa, que até há bem pouco tempo não havia. Infelizmente, ainda temos algumas forças que bloqueiam o avanço e a modernização do País...

Quer especificar quais e em que sectores?

Há autênticas famílias de interesses organizados em Portugal que enriqueceram e tornaram-se poderosas, conseguindo com isso afrontar o poder político. Muita dessa gente tem um défice enorme de cultura democrática. O antigo ministro da Cultura e da Educação francês, Jack Lang, dizia há meio dúzia de anos que os políticos apresentam uma máscara de impotência perante a força dos poderes ocultos.

O Governo de José Sócrates acabou de tomar posse. A Lídia Jorge falou recentemente que o País carece de «políticas de socorro». Quer elencar alguma que considere emblemática?

Antes de mais, em matéria de educação, é preciso um novo espírito no ensino (em todos os níveis, básico, secundário e superior) e na academia. Prefiro não falar em reformas, visto que são sempre entendidas como algo muito institucional e as leis podem ter o condão de mudar, mas também pode tudo ficar na mesma sempre e quando se mantiver a atitude que temos tido.

Defende uma revolução de mentalidades nas escolas?

É preciso democratizar a escola e introduzir a lógica de que todos os graus de ensino devem ser centros de criação de saber em vez da actual situação, em que os alunos passivamente se limitam a receber actos de saber. A natureza da relação entre alunos e professores na sala de aula tem de mudar por completo, pondo fim à extraordinária preguiça dominante em matéria de criação do saber. Neste aspecto há uma revolução cultural a fazer no sistema educativo. 

Como explica que sejamos dos países que mais investe em educação e dos que menos frutos colhe em termos de resultados?

A cultura mental sub-desenvolvida e a herança de atraso atávico são marcas que não se apagam de um dia para o outro. No final dos anos 90, o Governo de António Guterres designou a educação como a sua «paixão», mas as mudanças substanciais preconizadas não se traduziram em actos concretos. Penso que falta muito por fazer: a escola e a universidade deviam ter, necessariamente, uma cultura empresarial associada. E depois há erros de palmatória que importa erradicar.

Quer dar exemplos desses erros?

Ao contrário do que é pacificamente aceite, não se pode ser um bom aluno a matemática dispensando a leitura regular, porque convém não esquecer que o pensamento lógico radica nas capacidades de recriação e imaginação desenvolvidas através da leitura. 

Mas os níveis gerais de sucesso na matemática são péssimos... 

Temos um problema sério com a matemática e haveria que identificar o que é que falha na estratégia. A explicação para as más notas nesta disciplina não reside, certamente, na estupidez dos alunos.

Que tipo de reorientação estratégica sustenta para o ensino?

Haveriam outras alterações de fundo a fazer: os processos didácticos têm de se reestruturados e a própria concepção de que o ideal é ter mais professores e menos alunos não é a mais adequada, porque não é líquido que traga melhor aproveitamento. Urge repensar as estratégias actuais de ensino e fundamentalmente terminar com uma lógica de passividade instalada nas escolas.

Está de acordo com a intenção expressa no programa do Governo de não construir mais universidades e institutos politécnicos durante os próximos quatro anos?

Concordo. Muitas vezes a multiplicação dos pólos universitários e institutos é feita com matéria-prima cultural de baixíssimo nível. O que se assiste é a reprodução de contingentes de alunos formados em universidades impreparadas. Há muitas universidades sem espírito académico e que deviam ser submetidas a uma avaliação de forma rigorosa e exigente. O termo «universitas» significa saber de cúpula ou visão global das coisas, e não é propriamente o que se passa. 

Defende uma espécie de «depuração»dos estabelecimentos universitários?

É precisar reciclar as entidades e os próprios professores que nelas leccionam. Para além disso, constato que se tem caído noutro erro básico que é regionalizar e «provincializar» a universidade — o que se assiste é que são formados mestres com horizontes demasiado estreitos e visões paroquiais.

Consegue escolher o livro ou os livros da sua vida?

É impossível escolher só um. Posso seleccionar três que me marcaram em diferentes fases da minha vida: «Guerra e Paz», de Tolstoi, tinha eu os meus 15 anos; «Nada» da catalã Carmen Laforet, durante o meu período de estudante universitária e, finalmente, «Orlando» de Virginia Wolf, já na minha idade adulta.

O filósofo José Lezama Lima disse: «se uma critica é má, leio-a rápido. Se é boa, leio-a devagar». É sensível às criticas que fazem ao seu trabalho?

Parafraseando Virginia Wolf, «o poema é uma parte muito sensível do meu corpo», logo os livros são a nossa carne mais profunda. Oiço e leio as criticas, mas procuro manter-me fiel ao projecto e ao rumo que tracei. A Agustina Bessa-Luís disse-me uma vez: «Não se deslumbre com as boas criticas, mas não se deixe afundar quando forem más». Acho que é esse o caminho a seguir...

Sente que a Língua Portuguesa perdeu influência no mundo?

Pelo contrário. O Brasil e Angola continuam a ser forças extraordinárias. A influência de Portugal no Português é que está a diminuir por termos perdido a vertente continental e, por este andar, em breve vão todos dizer que falam «brasileiro». 

A Língua é um instrumento da alma e há que evitar a todo o custo que a sua influência seja mitigada por pura negligência. Não tem havido uma política de Língua capaz, concertada, séria e ainda perdura um certo complexo lusófono. 

Mantém-se um certo preconceito latente com as ex-colónias?

Os políticos ainda falam da lusofonia com laivos de imperialismo. Portugal continua mal colocado na cena internacional e junto das entidades com poder decisório. É incompreensível que a presidência da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) nunca tenha passado pelo nosso País.

Pode afirmar-se sem rodeios que Portugal é um país de bons escritores?

Não tenho a menor dúvida. A Cultura está bem servida na Literatura, tanto em qualidade como em quantidade - alguns dos autores são mesmo internacionalmente valorizados e têm demonstrado além-fronteiras Portugal como um País em mudança. A Literatura, ao contrário do Cinema e do Teatro, desfruta de um grande grau de independência, bastando o tempo e o talento para se tornar uma realidade. Pelo contrário, noutras artes, os projectos são sucessivamente adiados, simplesmente porque a Lei do Mecenato quase não funciona e os apoios tardam em chegar.

Aceita ou critica o florescente fenómeno da «Literatura light»?

Há que assumir que a «Literatura light» é uma espécie de «fast-food» literário, mas convenhamos que não é um fenómeno exclusivamente português. É uma Literatura fácil, em que se ganha dinheiro e se atinge a fama de forma rápida. Mas não creio que nos devemos preocupar com o sucesso de uma Literatura dessa natureza, se se separarem as águas e definir que a Literatura convencional é outra coisa, completamente diferente, que não isto. 

Não encontra qualquer virtualidade na «Literatura light»?

Encontro. Ver um jovem ou um adulto ler um livro dessa natureza em vez de estar a folhear uma revista só com fotos e legendas representa um salto antropológico extraordinário. Mas estou confiante que os apelos vindos da escola para a leitura e as barreiras que neste campo se vão derrubando vão aumentar os níveis de leitura. Só que em Portugal a concorrência da televisão é muito forte.

O consumo televisivo em Portugal é excessivo?

Somos um País «teledependente». O ecrã é uma espécie de refúgio dos jornais e dos livros, que exerce um poderoso efeito anestesiante que adormece as pessoas.

O advento das privadas degradou o produto televisivo?

O nível desceu, nomeadamente nos programas de entretenimento, e os excessos aumentaram, mas inversamente ganhou-se na pluralidade informativa. O Portugal de hoje não seria o mesmo se a SIC e a TVI não tivessem nascido. Os cidadãos apuraram o seu espírito critico e agilizaram a capacidade de expressão. Em suma, assumiram-se, sem preconceitos.

A RTP está mais próxima de cumprir o serviço público?

Sem dúvida. De há um ano a esta parte o canal do Estado operou uma mudança pela positiva e «desvinculou-se» de uma certa obsessão pelas audiências. Basta ver o «Telejornal» e constata-se a sensatez na abordagem dos temas, bem como a independência perante o poder político.

 


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