VICENTE JORGE SILVA,
EX-DIRECTOR DO PÚBLICO, EM ENTREVISTA
Caso Marcelo foi
pedagógico

Tem 59 anos, fundou e dirigiu o «Público», foi sub-director do «Expresso» e criador da saudosa «Revista» do mesmo jornal, tendo antes trabalhado como director do «Comércio do Funchal», na ilha onde nasceu. Quando se apresta para abandonar a política e colaborar no relançamento do «DN», Vicente Jorge Silva lança um olhar crítico sobre a paisagem mediática dos nossos dias.
Como é que observa, agora mais distanciado, o panorama da imprensa nacional?
Verifico que há uma degradação dos padrões de qualidade nos «media», degradação essa motivada por um processo de promiscuidade entre o poder político, económico e mediático. Só que não é algo que é novo, vem detrás. Muito por culpa da dimensão do mercado e do próprio País. Em Espanha, é possível distinguir o «El País» como um jornal de esquerda e o «El Mundo» como um jornal de direita. Em Portugal não há mercado para os órgãos se afirmarem de forma clara no seu posicionamento político.
Falta variedade e mercado aos nossos jornais?
Existem mercados mais pequenos em que se podem explorar novas temáticas, alheias à política. Imagine que eu gostaria de fazer um jornal dirigido para os sectores mais dinâmicos da sociedade: as universidades, a investigação e a inovação, são muito mal cobertos pela imprensa. Faz sentido que apareça amanhã um título que possa reflectir o que se passa no meio universitário: os movimentos, as tendências criativas, investigativas, etc. Um projecto desta natureza não teria que estar necessariamente ligado à esquerda ou à direita.
Mas a dicotomia esquerda-direita continua muito latente na imprensa portuguesa?
Hoje é evidente que o jornal que eu ajudei a fundar, o «Público», mantém uma matriz de esquerda, mas os editoriais do seu director, José Manuel Fernandes, situam-se à direita. Existe uma contradição excessiva entre a sensibilidade média do jornal e a opinião do director.
Isso torna o jornal mais híbrido aos olhos do leitor?
Sem dúvida. Não faz sentido que o director de um jornal tenha uma posição discordante face à sensiblidade média da redacção.
Apesar disso, considera o «Público» , hoje, o único jornal diário de referência?
Creio que sim. E, nesse sentido, vou colaborar com a nova direcção do «Diário de Notícias» («DN»), porque acho importante que o «Público» não tenha o monopólio da imprensa de referência. Se for à Assembleia da República verá que o jornal preferido pela esmagadora maioria dos deputados é o «Público».
O facto de o «Público» ser um jornal privado e ter um rosto, Belmiro de Azevedo, ao contrário do »DN», é um factor que pesa?
Não é decisivo. O «DN» terá, talvez, sido mais vulnerável às pressões internas da lógica difusa entre o sector público e privado.
Nalgum momento sentiu pressões por parte de Belmiro de Azevedo?
É óbvio que houve alguns episódios, não vou negar. Mas conseguimos geri-los.
Quanto tempo é que um director se deve manter ao leme de um jornal?
Eu estive 6 anos, mas defendo que, tal qual como nas legislaturas, 8 anos são mais do que suficientes.
Foi sub-director do Expresso e o mentor da «Revista», que se tornou um dos ícones do jornal. Não se revê na «Única»?
Que horror! A «Única» está ultrapassada e tornou-se num suproduto vulgar, equiparável a revistas do tipo «Caras» e «Vip», sobressaindo uma componente «mundana» e algo provinciana. A «Revista» que eu fundei funcionou como um fenómeno cultural e de moda «tout court», tendo servido de locomotiva à afirmação do jornal.
Entende o «Expresso» de hoje em dia como aquele jornal que todos compram e poucos lhe passam os olhos?
Não concordo. O «Expresso» tem vindo a perder imensos leitores e a ver as suas características originais a degradarem-se ao longo do tempo, insistindo muito numa tendência tablóide, que se reflecte directamente nas manchetes. Mas estamos perante um fenómeno muito peculiar, a começar por ser um produto que se compra dentro de um saco de plástico. Compra-se o produto, independentemente do teor da primeira página, como se fosse um produto comprado no supermercado — é algo que não se pode dispensar e que o consumidor típico quase associa a um «bem de primeira necessidade».
Mas o «Expresso» não mantém uma enorme influência?
Não creio. O jornal vende, fala-se das manchetes e dos artigos do director, mas cada vez mais numa perspectiva caricatural.
O que é que quer dizer com a frase: «os valores éticos do jornalismo estão a ser trocados por ambições mercantilistas»?
Não pretendo ser uma referência moral do sector, mas entendo que os padrões do jornalismo estão a ser subvertidos e que se tenta uma tabloidização, quer na imprensa escrita, quer nas televisões, em que a importância real tende a ser esmagada pela lógica de um espectáculo triste.
Prevê que tenhamos num futuro próximo a proliferação de novos «24 horas» ou de novos «Públicos»?
O caminho da tabloidização é o mais fácil de seguir. Mais preocupante é a tendência dos «newsmagazine», casos da «Visão», «Focus» e «Sábado», serem produtos cada vez mais indiferenciados. Creio que se está a insistir num equívoco total que se baseia em multiplicar e aproximar o conteúdo destas publicações com as «revistas do coração». Tem-se apostado, disparatadamente, na uniformização do padrão do consumo — e vão rareando projectos menos estereotipados que correspondem às necessidades de públicos mais exigentes.
A relevância do «caso Marcelo» aconteceu por ter envolvido.... Marcelo?
Não tenho a menor dúvida. O «caso Marcelo» teve um papel pedagógico no sentido que levou a opinião pública a reflectir sobre a censura e as pressões no século XXI, actos que julgavam mais próprios no tempo da «outra senhora». Eu discordava com o monólogo que caracterizava a intervenção de Marcelo, mas estamos a falar de uma estação privada que, por sinal, foi originalmente a televisão da Igreja e agora acaba no canal que produz «A Quinta das Celebridades», sem que o Estado tivesse questionado o contrato de concessão...
Como comenta a proposta de José Sócrates que pretende proibir a participação do Estado nos «media»?
O que o PS fez no passado nos «media» foi desastroso. Agora quando o secretário-geral fala em privatizar os órgãos de comunicação social eu perguntou: para quem? Para Balsemão não pode ser porque tem uma posição dominante, para Paes do Amaral muito menos depois do «caso Marcelo», Belmiro de Azevedo não está interessado. Para a Cofina de Paulo Fernandes? Nem pensar... Não nos esqueçamos que foi este senhor que emitiu um comunicado a dizer que Sampaio não podia dissolver o Parlamento. Isto leva-me a pensar que este empresário também tem algumas dependências face ao Governo. Preferia milhões de vezes mais trabalhar com grupos estrangeiros, desde que se mantivesse a independência efectiva do órgao de comunicação. Mas «malgret tout» prefiro a PT, desde que a emprensa interiorize tudo o que se passou.
O mercado da Comunicação Social não consegue absorver a proliferação de milhares de recém-licenciados. Como vê este problema?
Assistimos à proletarização do trabalho, que não é exlusivo da Comunicação Social. Os candidatos superam em larga margem as vagas do mercado. Passou-se de um período em que a tarimba chegava, para um período de hiper-qualificação e hiper-mitificação do estatuto do jornalista. Em 1990, ainda os cursos de Comunicação Social não tinham dado o «boom», já havia a aura mítica em torno da profissão: sabe um pouco de tudo, tem uma vida agitada, viaja muito e tem acesso ao poder, sem se ser do poder. Isso determinou um grande fascínio dos mais novos pela profissão, mas em grande medida devido ao advento das televisões privadas. Hoje estamos numa fase de resssaca e essa aura
mítica vai-se desvanecendo. As expectativas são grandes, mas ontem como hoje a oferta não corresponde à procura existente.
A escapatória costuma ser as assessorias políticas...
Há situações que me provocam impressão: ver pessoas a passar do jornalismo para a assessoria política ou vice-versa. Ele hoje passa por uma vítima, mas o ex-director do «DN», Fernando Lima, veio directamente de assessor do Ministro dos Negócios Estrangeiros para o cargo de director do jornal, rejeitado pelo conselho de redacção. É algo perverso.
Nuno Dias da Silva
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