SÉRGIO GODINHO EM
ENTREVISTA
"Invistam em
escolas e hospitais!"

«É terça-feira». Não na Feira da Ladra, mas nas instalações da «Praça das Flores», a empresa que produz os espectáculos de Sérgio Godinho. O cantor recebe a reportagem do Ensino Magazine com o habitual «Brilhozinho nos olhos» para uma entrevista em que fala de tudo: das suas músicas, do 25 de Abril, do Estado da Nação, da juventude, da guerra do Iraque e dos falhanços dos sucessivos governos na definição de prioridades e na gestão dos recursos. Fala também do mega espectáculo que vai dar em Castelo Branco durante o Festival Naturtejo Euro 2004. Foram 40 minutos de conversa. «Soube-me a tanto. Portanto. Soube-me a pouco»...
Com 58 anos de idade, 33 anos de carreira e 23 discos gravados, continua a ser uma referência musical para todas as classes etárias. Qual é o segredo para este sucesso e também para a longevidade?
Não há segredo nenhum procurado, nem truques na manga. Há, por um lado, a vontade de criar e de transmitir o produto final aos destinatários. Depois de criar, gravam-se os discos e, só depois, mostram-se as canções, transformando-as ou revitalizando-as em palco. Tenho tido a preocupação de recuperar de forma activa e natural certas canções, nomeadamente através de «trocas» com músicos. Claro que nada disto seria possível sem a consonância feliz de as pessoas se referenciarem não só quanto ao conteúdo, mas à forma das minhas canções. A forma é que faz o conteúdo: falar de amor, de injustiça ou de guerra numa canção pode ser perfeitamente banal se um artista não apresentar bem o seu caso a quem o vai ouvir.
«Um contador de histórias da música portuguesa» foi como o «Jornal de Letras» caracterizou o Sérgio Godinho há uns anos atrás. Como é que se define?
Afirmo-me como um criador que usa várias disciplinas para dar vida às minhas músicas. Sou um escritor de canções que abarca quatro vertentes distintas: a letra, a música, a maneira como ambas interagem dinamicamente e a forma como a canção é transportada para os palcos. De alguma maneira sou um «performer».
A faceta de intervenção social está muito marcada nas suas composições. As mensagens que veicula nas suas músicas dirigem-se a alguém em particular?
Eu olho para a sociedade e reflicto sobre ela e sobre vários aspectos: alguns mais do quotidiano, outros mais de teor relacionado com a justiça ou a falta dela. Admito que são temáticas com ressonância social, mas o meu universo é composto por todas as canções. Se formos a pensar no «Brilhozinho nos olhos» ou o «Primeiro Dia» são composições mais vivenciais e lúdicas, que nada têm que ver com a observação para o social no seu aspecto político.
A música é o espelho da sociedade e do artista que a canta. De que forma é que as suas músicas evoluíram em função das mutações sociais? Conseguiria definir etapas cronológicas?
Não há etapas de uma maneira tão estanque, mas é evidente que o 25 de Abril foi e é uma data charneira na História de Portugal e também na minha vida pessoal. Comecei a compor e a gravar antes da revolução. Dois dos meus discos foram feitos quando não podia sequer vir a Portugal (estive nove anos a viver no estrangeiro) e não podia cantar e testar essas canções ao vivo
- o que era muito estranho, porque eu era conhecido mas nunca tinha cantado no meu País. As minhas canções pautam-se por constantes e variantes, até mesmo de linguagem. «À Queima Roupa» e «De Pequenino Se Torce o Destino», que saíram a seguir ao 25 de Abril, reflectem muito a linguagem política do próprio quotidiano da altura, com o recurso a uma verbalização fortemente política patente nas canções. O «À Queima Roupa», que integra a música «Etelvina», é um retrato social com um personagem marcado que existe em muitos álbuns meus já editados e que marcará presença nos próximos. Nas minhas canções coexistem na mesma criação, as pessoas, as frases que o povo diz, as personagens, os esboços, as narrativas, etc.
O período revolucionário foi fundamental na sua carreira?
Cresci criativamente numa altura em que nem sequer podia vir a Portugal e em que existia um regime fascista, que entrou numa guerra colonial que sugou toda a energia e o orçamento deste país, e que fez com que muitos jovens que para lá foram não voltassem, ou os que o fizeram viessem estropiados. São situações que moldam e que me deram convicções que, considero até hoje, serem de esquerda.
A canção ainda é uma arma, como se apregoava no período revolucionário?
Essa frase foi um bocado sobrevalorizada. As canções podem servir num momento revolucionário para estar ao lado do movimento e, ocasionalmente, estar atrás ou à frente. «Grândola Vila Morena», do Zeca Afonso, é um bom exemplo: não é, em si, uma canção revolucionária, mas converteu-se no maior emblema do 25 de Abril. Mas creio que não vale a pena interpretar uma canção com um certo conteúdo se o receptor não for o apropriado.
Cumpriram-se 30 anos do 25 Abril, com algumas vozes a apontarem que o espírito da revolução dos cravos tem vindo a adulterar-se. Qual é a sua opinião?
Tal qual como existiu, já não existe. O espírito de Abril foi um momento de pureza, de grande ingenuidade (ainda bem que a houve), que permitiu uma grande mobilização das pessoas à volta de assuntos concretos. Foi um despertar para uma nova realidade. Com os anos verificou-se uma normalização, que por um lado representa uma solidificação das estruturas democráticas, e por outro manteve-se uma democracia formal mas que muitas vezes não tem uma correspondente participação activa dos eleitores.
De uma forma global pode dizer-se que valeu a pena ter feito a revolução?
Claro. Longe das paixões políticas não é difícil concluir que foi um momento da História que mudou Portugal. O que os sucessivos governos vão fazendo já é outra questão...
Que principais pecados aponta aos governos da era democrática em matéria de execução política?
Têm falhado, em pontos-chave como a Educação, que continua extremamente insuficiente, não só a nível das condições de trabalho, mas mesmo em termos da motivação para o estudo, de um modo geral. Temos dos piores aproveitamentos da U.E., e simultaneamente, somos dos que mais investem no sector.
Num País que precisa há décadas de um melhor sistema educativo e de saúde como de pão para a boca, pensa que a «Expo 98», o «Porto - Capital da Cultura» e o «Euro 2004» eram realizações prioritárias?
Uma coisa não exclui a outra. O problema é a gestão de recursos. O «Porto - Capital de Cultura» (de que eu, aliás, fiz parte do conselho consultivo) com todas as suas insuficiências e a falta de dinâmica de continuidade, foi uma iniciativa mobilizadora e que mexeu com muita gente, à semelhança da «Expo 98». O «Porto - Capital da Cultura», creio que foi uma iniciativa que também sofreu negativamente com a mudança do poder autárquico. Esta gestão camarária portuense investe muito menos na Cultura do que a anterior.
Quanto ao «Euro 2004», não estarei tão de acordo, e tenho um sentimento muito ambivalente em relação ao número de estádios construídos.
A moral da História é que o Estado é um mau gestor?
Não têm sido estabelecidas as prioridades da melhor forma. Ainda no outro dia o Ministro David Justino dizia que não falta dinheiro para a Educação — o que é ao mesmo tempo uma afirmação sincera mas de reconhecimento do fracasso. Falta, acima de tudo, uma melhor gestão dos recursos. É preciso dinheiro, claro, mas acima de tudo um abanão.
Na altura da «Expo», quando algumas pessoas se insurgiam contra o dinheiro gasto no evento e alegavam que esses fundos podiam ser canalizados para escolas ou para hospitais, eu sempre disse que se acabasse com a tropa e os gastos monumentais que sempre existiram nas forças armadas e noutros sectores. Retire-se dinheiro aos quartéis e invistam em escolas e hospitais.
A política e os políticos são entidades com um acentuado défice de credibilidade. A que se deve esse descrédito?
A imagem que a classe política dá é muito perniciosa para si mesma e também para o povo português. Tal, deve-se, em grande medida, ao facilitismo com que muitos encaram a sua passagem pela actividade. Instituiu-se uma cultura de corrupção numa certa classe política, de promiscuidade com sectores da sociedade civil. Mas também nunca embarquei naquela lógica que o cidadão se deve sentir um santo e um guardião dos valores e que os políticos são todos corruptos. Não é possível generalizar.
A abstenção é a única forma de penalização ao alcance dos cidadãos?
Não é a única. Cresci numa família que era contra o regime salazarista e sabendo-se que ou não se podia votar ou se se podia as eleições eram fraudulentas, interiorizei que ninguém se deve abster de exercer o seu direito cívico. Nunca votei em branco. Votei sempre em alguém, fosse ele o meu candidato ou um mal menor.
Discorda então da tomada de posição de José Saramago no seu último livro, «Ensaio sobre a Lucidez»?
Votar em branco é a mesma coisa que dizer que são todos iguais. Mesmo como voto de protesto para mim não chega. Quanto às declarações de Saramago creio que elas têm um grau de provocação deliberada muito grande e que não correspondem ao habitual pessimismo profundo que o caracteriza.
O caso Casa Pia continua a agitar o País. Fala-se em crise de valores e de moral. Diz-se que o País vive imerso na depressão. Que radiografia é que o artista Sérgio Godinho, que cria muitas das suas composições com base na reflexão sobre Portugal, faz da nação?
O que é terrível é que se comece a interiorizar a crise. Somos um País que alterna ciclos de euforia e depressão rapidamente - temos tendência para ser ciclotímidos. Em todas as gerações há coisas boas e más. Se olhar para a juventude de hoje em dia em alguns sectores das artes, vai reparar que se fazem coisas interessantes e
descomplexadas.
A «geração rasca», uma designação da autoria de Vicente Jorge Silva no «Público», tem algum razão de ser?
Acho que sempre houve muita rasquice e boçalidade, mas também creio que foi uma declaração igualmente
sobrevalorizada.
Como é que os comportamentos da geração actual e da sua geração se explicam à luz do contexto social e político em que estão inseridas?
O País mudou muito depressa. Houve uma «política de terra queimada» nos valores, sobretudo nos anos 80. Hoje em dia a juventude procura mais compreender as suas raízes, o que também se nota no âmbito musical. Mas a juventude não é homogénea. Tenho uma canção que se chama «Maçã Com Bicho» que aborda as praxes, na sua componente mais humilhante. Não se trata de uma posição contra todo e qualquer ritual académico mas sou da opinião que a parte mais visível são rituais de humilhação. Nessa canção digo que «não é rastejando que se ascende aos tectos» e que isso é «prender o humor na gaiola do riso». Digo isto com total à vontade porque continuo a participar em festas universitárias.
A guerra no Iraque marca há um ano a actualidade internacional e, por via da participação portuguesa, boa parte das notícias nacionais. Qual é a sua opinião sobre o rumo que tomou este conflito?
É uma guerra completamente aldrabona nos seus propósitos. Quando ouvi pela primeira vez dizer que ia haver um movimento de guerra no Iraque não acreditei. O próprio argumento das armas de destruição maciça já caiu por terra - era mais uma desculpa de mau pagador. A opinião pública não é ingénua. Esta guerra é extremamente perigosa porque abriu uma brecha na paz e fez estalar conflitos em zonas anteriormente pacíficas. A Al-Qaeda não estava no Iraque e agora está. Pior do que isso houve um plano para a guerra e não foi feito um plano para a paz. É inacreditável que a nação mais poderosa do mundo tenha este comportamento.
Pensa que os americanos vão devolver a soberania aos iraquianos a 30 de Junho?
Não sairão. Se o fizerem perdem a face e para além disso há eleições presidenciais na América em Novembro. Bush está metido na camisa de onze varas que fabricou.
O Governo português decidiu bem ao estar do lado dos aliados?
Portugal não devia ter tropas nenhumas no Iraque. O Governo foi de uma esperteza ao enviar tropas da GNR para não ter que ir explicar-se ao Parlamento. É uma vergonha Durão Barroso ter dito, «preto no branco», que viu em Inglaterra as provas das armas de destruição maciça quando os americanos já garantiram que nada viram. É mais um exemplo de que o grau de impunidade que existe em Portugal é muito grande.
Nuno Dias da Silva
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