Director: João Ruivo    Publicação Mensal    Ano VII    Nº76    Junho 2004

Entrevista

JOSÉ MANUEL CASTANHEIRA

A arquitectura de um cenógrafo

Após mais de 30 anos ligado às artes do espectáculo, hoje será porventura um dos melhores cenógrafos do mundo. Está a desenvolver trabalho em Espanha, França, Portugal e Brasil, o qual vai coordenando com a profissão de professor na Faculdade de Arquitectura de Lisboa, que exerce vai para 23 anos.

Chama-se José Manuel Castanheira, nasceu em Castelo Branco, terra natal à qual voltou este mês para criar a cenografia daquele que terá sido o melhor desfile de moda realizado na cidade beirã, cuja organização esteve a cargo do Instituto Politécnico e da Escola Superior de Artes Aplicadas, à qual José Manuel Castanheira pertence enquanto membro do Conselho Científico.

Dias antes do desfile, aceitou falar ao Ensino Magazine, numa conversa curta pela falta de tempo, mas franca pela natureza de quem é beirão, de quem não abdica dos valores das suas raízes e procura mesmo explicar o percurso de vida a partir de uma infância vivida na aldeia de Escalos de Baixo e uma juventude já mais matreira desenrolada na cidade.

Por cá já abdicava por vezes das aulas para dedicar mais tempo ao teatro, à música, aos cenários, a que na altura, confessa, não dava importância numa lógica de futuro. Seguiu-se Lisboa e o curso de arquitectura, o qual foi importante profissionalmente, mas sempre em equilíbrio com a actividade de cenógrafo, que nem por isso tem muito a ver com a de arquitecto.

PERCURSO. Falar de um percurso tão rico não é tarefa fácil, muito menos para quem o viveu, mas ainda assim entende que a sua posição actual resulta “de um reconhecimento que foi feito internamente, fruto de um trabalho intenso em praticamente todas as companhias de teatro nacionais, bem como pelo facto do meu trabalho ter sido observado por directores, empresários e investigadores de vários países, nos quais trabalhei mais tarde”.

O reconhecimento do seu trabalho no estrangeiro tem porém um marco histórico; a exposição no Centro Georges Pompidou, em Paris. “Nessa altura tinha já feito algum trabalho em Espanha e França, mas não tinha a trajectória. Esse terá sido um ponto-chave, que na altura não terá sido muito significante em termos de teatro português, situação que se inverteu uns anos mais tarde, como aliás é normal no nosso país”.

Continua a trabalhar em Portugal e noutros países da Europa, mas desde há alguns anos que está envolvido em vários projectos no Brasil, onde faz normalmente duas produções por ano. Um trabalho que não lhe faz esquecer a vertente pedagógica, “o qual acarinho muito e dou uma especial atenção, pois, além do método pessoal de permanente estudo e de investigação, é um método de transmissão de experiência”.

Este proporcionar o “fruto do trabalho quotidiano” será uma das suas facetas menos conhecidas, mas das que considera mais ricas, a nível nacional e internacional, participando em eventos de variados tipos, de colóquios a outros. “É muito importante poder contactar com novas gerações e proporcionar a minha experiência”.

ESART. Nessas suas incursões pedagógicas frequentes, tem passado pela Escola Superior de Artes Aplicadas por várias ocasiões. Uma instituição que diz ver “com muito entusiasmo e optimismo desde o primeiro momento”. Não só por ser albicastrense e beirão, o que gosta de referir onde quer que vai.

“Digo sempre que sou português, mas que nasci em Castelo Branco”, afirma. Algo que é visível na sua obra, como referem alguns entendidos. Não nega essa influência e muito menos um carinho especial pela Esart. Entende que as artes do espectáculo e as artes da imagem são hoje praticamente indissociáveis, ao ponto de estarem na origem de novas profissões, algumas delas ainda sem nome definido, dado resultarem de fusões várias.

Dada essa evolução, considera que “o País precisa de escolas que dêem resposta a estas necessidades”, o que entende acontecer com a Esart, desde o mundo da música ao do design e da imagem, bem como ao nível da interdisciplinaridade dessas áreas, pelo que, sem querer fazer futurologia, “olhando ao trabalho que está a ser desenvolvido, a escola tem todas as condições para ser uma referência nacional”.

Maior referência será se um dia Portugal revolucionar o ensino, apostando na educação pela arte, uma educação que se inicia no pré-escolar e segue nos níveis seguintes, sempre em contacto com a arte, seja o teatro ou outras expressões. “Penso que é isso que a Maria João Pires tenta fazer em Belgais, o que nem sempre é compreendido”.

INTERDISCIPLINARIDADE. A interdisciplinaridade que reclama hoje como necessária acaba por estar subjacente a todo o trabalho que faz, desde o desenvolvido na televisão ao do teatro. Mas há outros. Já fez montras, pavilhões de Portugal em feiras internacionais, pavilhões de várias empresas, artefactos cénicos como a máquina que representou a região de Castelo Branco na peregrinação da Expo 98.

A vertente da pintura é outra das fundamentais, a qual hoje cola a tudo o que faz. “Uma parte considerável das últimas coisas que tenho feito, tem uma componente pictórica muito forte, o que não acontecia há 10 anos atrás”. Esta novidade resulta também do recuso às novas tecnologias multimédia, um recurso do mundo actual que poderá impossibilitar a criação puramente original.

“A originalidade é uma questão complexa. Ser original é um falso problema porque já nada é original. Acontecem é duas situações distintas: há pessoas que se limitam a copiar aquilo que existe; outras partem de algo que existe e dão um passo mais além. Parte de uma referência. Isso é o que eu faço e o que a grande maioria das pessoas faz. Ninguém parte do zero e diz: «eu inventei o mundo»”, adianta.

A este respeito recorre a Pina Bausch, bailarina e uma das maiores coreógrafas da actualidade, a quem perguntaram se tinha consciência que muitas pessoas copiavam o seu trabalho, o que não a preocupou. Dizia que se as pessoas apenas se limitavam a copiar o que ela fazia, isso era lixo, não a interessava. Já as que viam o que fazia, pegavam numa ideia, num conceito e conseguiam partir para algo novo, isso já a deixava satisfeita.

FUTURO. Ao nível de projectos futuros, depois de ter terminado uma ópera em Lisboa, José Manuel Castanheira está a preparar um espectáculo na Ópera Municipal do Rio de Janeiro, o Baile de Máscaras, de Verdi, o qual estreia ainda este mês de Junho.

Em Portugal está a trabalhar numa comédia que estreará no Teatro da Trindade, que parte de um texto do americano Steve Martin. “É uma comédia muito interessante. Trata-se de um encontro fictício entre Picasso e Einstein, no qual se discutem as grandes mutações do século XX, de uma forma muito irónica”.

Voltará depois ao Brasil, a São Paulo, para trabalhar a cenografia de um drama em que contracenam José Wilker e Marília Gabriela. Até lá vai continua um trabalho pictórico sobre Fernando Pessoa, que já está em curso e que será exposto em Portugal. No Verão orientará ainda um seminário sobre cenografia, na Faculdade de Arquitectura de Lisboa.

A par de grandes produções ou de trabalhos mais associados ao ensino, continua a trabalhar com o teatro amador e universitário, onde começou a sua carreira de cenógrafo. “A fenomenologia do espectáculo interessa-me de um modo global. Seja um desfile de moda, uma ópera ou até cinema, televisão, futebol ou circo. Sou um estudioso desse universo e cada caso é um desafio que faço com muito gosto”.

Ainda recentemente fez o cenário de uma comédia, com o grupo Arte Viva, do Barreiro, uma de um autor espanhol que retracta a vida de um árbitro de futebol. Uma outra comédia em que trabalhou está no Teatro Villaret. “É uma peça inglesa, muito sarcástica para o governo de Tony Blair, mas adaptada à realidade portuguesa, em que contracenam o António Feyo e o José Pedro Gomes. Chama-se originalmente Feel Good, mas aqui traduziu-se por Deixa-me rir”.


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