Director: João Ruivo    Publicação Mensal    Ano VII    Nº71    Janeiro 2004

Opinião

CRÓNICA

A fossa

Em qualquer balanço - que este escrito não é - há sempre a tendência para realçar o negativo ou, dito de outra forma, é o negativo que dá mais pano para mangas. Chega a ser penosa a repetição dos erros, dos lapsos, das faltas, dos constrangimentos, só por que, diz-se, assim aprenderemos a não os voltarmos a cometer.

Repito: não se trata de balanço algum o que aqui se escreve. Essa ferramenta serve para tomar o peso de activos e passivos, conhecidos, palpáveis. Ora não se pode quantificar a matéria de que falamos por que não a conhecemos. É apenas uma sensação de mal estar, de profunda angústia, duma raiva não orientada, pelo menos por enquanto.

Talvez o general romano tivesse razão quando apontou os nossos ancestrais lusitanos de ingovernados e ingovernáveis. Contudo, há razões de sobra para a nossa inquietação e os nossos medos. Fernando Pessoa dá assim o mote: Quem me dispôs para o que não pudesse?/ Quem me fadou para o que não conheço/ Na teia do real que ninguém tece? Eis algumas hipóteses para o nosso pessimismo ou simplesmente para o nosso descontentamento.

Mas há os elixires, a cartomancia, o ruído feito em redor do supérfluo, que desvia a atenção de quem quer entender o enlevo, que em linguagem mais chã se pode traduzir por canção do bandido.

É uma qualquer anestesia ou bebedeira seca que nos invade quando queremos entender o que fizemos para saber como faremos. Quem nos meteu neste filme? Quem é afinal que nos engana e engoda? Quem é essa gente que mente, que trafica e inventa o futuro que há-de ser o nosso?

São os ilusionistas, os equilibristas, os domadores de feras ou apenas palhaços vestidos de lantejoulas e sorriso pintado em exagero?

Não é fácil manter esta prosa uns furos acima da lamecha. Fácil é acreditar que há luzes no fundo do túnel, se alguém com responsabilidades nos garante tal perspectiva. O que se vai tornando cada vez mais difícil é a vida de toupeira sempre à espera da luz, rasgando o buraco onde nos meteram, dia após dia e quando finalmente parece aproximar-se a claridade, descobrimos que somos cegos.

João de Sousa Teixeira

 

 

 

MEDICINA DAS LETRAS

Ser médico!

Não consta que o médico seja um profissional desocupado!

O número de médicos que dedicaram ou passaram parte do seu tempo de lazer a escrever é elevado. A maior parte deles não atingiu a notoriedade e, é nesse grupo que me incluo. Sem querer fazer literatura ou jornalismo, aceitei o desafio de escrever uma crónica a “meu belo prazer”, uma vez por mês durante um ano.

“O mundo da Medicina é fascinante”.

A evolução, os avanços e os recuos, os desaires, o que hoje é verdade amanhã é mentira, tudo isto se passa no campo da Medicina. Daí a constante actualização que se deve e tem que ter nesta área da Ciência.

Aqui misturam-se os mistérios da vida, da morte da reanimação e do prolongamento da “vida” artificial.

Feiticeiros, sacerdotes, barbeiros, físicos, químicos, dentistas, cientistas já todos fizeram parte deste grupo profissional.

Após 1974 iniciou-se em Portugal um novo processo na relação médico-doente e aparece a responsabilidade médica. Desde aí, não há lugar ao mau profissionalismo, à irresponsabilidade, à negligência, respondendo-se por isso.

Pessoalmente, não acredito que o médico mal trate o doente porque não gosta, não simpatiza ou já teve algum problema com o seu cliente. A relação entre os dois baseia-se na confiança e na empatia, o que não impede que aconteçam erros no diagnóstico ou no tratamento. Muitas vezes, eles devem-se à ausência de meios auxiliares de diagnóstico à menor sensibilidade profissional ou à versatilidade do paciente. Daí surgirem processos contra médicos em Tribunal.

Com este panorama, a figura do médico como Deus para o doente e a do João Semana imortalizado por Júlio Dinis para o médico, deixaram de existir.

Ao médico não deve importar quem é o paciente, o que faz, a sua condição social, a sua raça ou o seu credo.

Não lhe cumpre condenar o doente pelas asneiras que conduziram à sua doença, como a boémia, a toxicodependência ou os excessos alimentares, mas sim tratar e aliviar os sintomas pois ele procurou-o em busca de ajuda e está a sofrer.

O médico pode lamentar os excessos, os desvios, aconselhar o seu paciente, mas em todas estas atitudes sobrenada a intenção de aliviar e curar.

O médico não deve empenhar-se menos na cura, na atenção e nos cuidados a prestar ao prevaricador que àquele que nunca pecou.

Dito isto, descoberto o diagnóstico, conhecido e administrado o tratamento, atingida a cura, o médico retira-se... terminou o seu trabalho.

Miguel Resende
Miguel Resende é médico
e assina esta coluna mensalmente

 


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