Director: João Ruivo    Publicação Mensal    Ano VII    Nº72    Fevereiro 2004

Entrevista

PADRE VÍTOR MELÍCIAS EM GRANDE ENTREVISTA

"Vivemos uma época anti-portuguesa"

Os órgãos de soberania portugueses devem apoiar-se mutuamente, sabendo que o primus inter pares é o Presidente da República e não a magistratura. Ao mesmo tempo, os políticos devem servir melhor a comunidade do que os seus partidos ou os objectivos políticos, enquanto a população portuguesa deve mudar a forma de encarar o futebol, onde se está a gerar uma cultura que vai contra a própria cultura portuguesa.

As convicções do Padre Vítor Melícias que, numa grande entrevista concedida ao Ensino Magazine espera que o Euro seja uma festa à semelhança da Expo '98, pelo que “cada português deve saber ganhar, saber perder ou às vezes até saber empatar, coisa que alguns não sabem. Nem sequer empatar!”.

De caminho, considera que a Igreja desempenhou um papel fundamental na formação de quadros em Portugal ao longo do século XX, o que continua a fazer agora com instituições de excelência, como a Universidade Católica, muito embora a oferta seja maior e existam boas instituições de Ensino Superior no Interior do País.

E se o ensino hoje é mais laicizante, Vitor Melícias aceita o facto, adiantando que o Estado também deve ser laico para permitir a liberdade religiosa. Porém, diz que a sociedade não é neutra. Razão que o leva a avisar contra os efeitos do neo-liberalismo, o que o leva a defender a globalização, mas numa lógica humana e solidária, à semelhança do que acontece com as relações entre Portugal e Timor, o novo país onde também existem misericórdias, as quais, para o Padre “são das instituições que, vindo do passado, têm mais características de modernidade”.

A educação em Portugal e sobretudo ao nível do Ensino Superior, vai ao encontro dos ideais cristãos ou será mais laicizante?

O ensino em Portugal teve uma tradição ligada à vida religiosa da sociedade civil, sobretudo até ao tempo do Marquês de Pombal, pois a educação acontecia sobretudo nos conventos, catedrais e só depois com as primeiras universidades e o ensino dos jesuítas. Com o Marquês de Pombal houve como que uma estatização do ensino, o que não significou a sua secularização. No século XX é que, independentemente do ensino religioso ou do particular com alguma influência religiosa, aconteceu uma laicização do ensino público. Aconteceu também uma redução ou eliminação total do apoio do Estado ao ensino promovido pelas igrejas nos seminários ou pelas famílias, sob orientação de instituições religiosas, o chamado ensino particular. Hoje temos um ensino plural, mas o Ensino Público ainda é muito marcado por uma tradição de forte laicismo.

De que modo é que isso se reflecte na sociedade: há muitas pessoas que se afastam da religião ou, no fundo, há uma parte dessa sociedade que se liga cada vez mais à religião?

O Estado é necessariamente laico. E é bom que o seja, no sentido de se separar das instituições, das confissões religiosas das diversas igrejas. Mas a sociedade não é neutra, não é laica. Existem diversas sensibilidades de práticas e opções religiosas. Nesse sentido, o Estado deve criar um espaço de enquadramento que permita a liberdade religiosa e a liberdade de ensino religioso ou não religioso. Se não proporcionar esse tipo de espaço livre e pluralista, haverá uma tendência para que o próprios ensino seja, pelo menos, a-religioso. Em Portugal, hoje, a matéria ainda não assume a gravidade que atinge noutros países, mas é sempre um risco para o qual devemos estar atentos, a começar pelas famílias. É importante que as famílias cristãs, muçulmanas, agnósticas ou até ateias possam desenvolver as suas obrigações em matéria de liberdade religiosa.

Em Portugal temos a Universidade Católica, considerada de excelência, pelo menos olhando ao desempenho social relevante dos seus formados. Como explica esse caso de sucesso?

Desde que não sejam negados os meios legítimos, é mais fácil atingir a excelência no sector social ou no sector privado do que no público, sobretudo se ele estiver burocratizado e desresponsabilizado. É isso que se vê na indústria, no comércio social, banca social e noutras áreas. A Universidade Católica, que surgiu como iniciativa do sector social, numa altura em que a resposta do Estado era, pelo menos, insuficiente. Foi-se afirmando pela possibilidade de opção, pela escolha de professores e alunos, transformando-se numa instituição com alguma excelência, distinguindo-se em relação a outras. Tal não significa dizer que no sector público e privado não existem bons estabelecimentos de ensino. A própria avaliação do Ensino Superior (e eu integro a comissão relativa à avaliação do privado) demonstra que em todos os sectores existem boas iniciativas.

A Universidade Católica investiu também no Interior, onde o Superior se desenvolveu muito nos últimos anos. Como encara o contributo do Ensino Superior para o desenvolvimento da faixa interior do País?

A existência de entidades vocacionadas para a formação de pessoas é sempre um factor, pelo menos potencial, de desenvolvimento. Se esse desenvolvimento for sustentável, a presença de iniciativas do Superior, técnico, humanístico ou outro, é uma forma de valorização das zonas menos centrais. Isto, a menos que não se desse o apoio e o estímulo suficiente a instituições de Ensino Superior, por estarem exactamente no Interior, degradando-os ou desvalorizando-os. Julgo que não é o caso e temos na Beira Interior, Trás-os-Montes e outros, várias instituições que mantêm um grandíssimo nível. Por exemplo, ao nível da avaliação, a Universidade de Aveiro tem primado em relação às universidades públicas centralizadas em Lisboa.

A Igreja Católica esteve sempre ligada ao Ensino e nunca se debateu com o problema de vocações, o que acontece agora. Pensa que tal se pode dever também à grande oferta formativa existente em todo o País?

Muita da formação do povo português foi feita através dos seminários, sobretudo quando não havia resposta suficiente por parte do estado e da sociedade civil. A Igreja pode orgulhar-se de ter prestado um enorme serviço a Portugal, o de ter formado uma boa parte dos quadros, sobretudo ao longo do século XX. Hoje, a chamada crise de vocações tem mais a ver com o estatuto e com a identidade do ministério sacerdotal e das condições em que se exerce. Não é um fenómeno exclusivamente português, mas também não encontra a sua justificação na melhor ou menor qualidade da formação ministrada.

Essa crise de vocações poderá ser ultrapassada?

O fenómeno será ultrapassado, e tem-no vindo a ser aos poucos com a alteração do estatuto de quem exerce o sacerdócio. Quer sejam homens, quer um dia possam ser mulheres, seja com o estatuto de celibato, ou não, é o estatuto do ministro sagrado que vai definir a maior ou menor participação na direcção religiosa cultural ou sacramental das várias comunidades. Provavelmente, e como está previsto, os leigos terão oportunidade de assumir um maior papel, desenvolvendo um dinamismo diferente do que existe hoje. Existem soluções intercalares, como os chamados diáconos permanentes, a atribuição de determinadas funções a leigos, as quais antes eram exclusivas de clérigos. O mundo vive uma grande evolução que também se revelam nesta matéria.

Mas a evolução do mundo não assenta muito numa cultura imposta pelos países mais desenvolvidos aos menos desenvolvidos, gerando uma cultura global que levará à perda da história, de valores próprios de cada país?

A globalização ou mundialização é um fenómeno positivo, embora seja negativa a forma como se está a processar, ou seja, motivada por interesses. É uma globalização económica, financeira, comercial ou até cultural, mas não uma globalização do homem enquanto ser universal, enquanto cidadão com direitos e deveres iguais, independentemente das circunstâncias em que se encontra no mundo. A verdade é que, se proclamamos direitos humanos universais, não praticamos direitos humanos universais.

Há forma de ultrapassar essa sonegação de direitos humanos universais a muitos cidadãos do mundo?

Já existem movimentos, como o Fórum Social Mundial, que têm apelado a uma alter-globalização. A designação é correcta, pois importa que a globalização seja da humanidade enquanto família global de todos os seres humanos, com dignidade, direitos e deveres iguais. Mas a criação de condições de igualdade não significam a eliminação da diferença. A igualdade constrói-se em cima da diferença, num mundo em que todos são iguais exactamente porque todos são diferentes. Só se trata de forma igual pessoas diferentes desde que sejam reconhecidas as diferenças. Tal poderá ser feito se os povos forem tratados na sua diferença segundo o princípio da solidariedade, ou seja, em que o todo se responsabiliza pelo bem de todos. A cultura universal, mas não necessariamente uniforme, é possível e necessária. Só haverá cultura humana globalizada se ela for uma cultura de culturas.

As misericórdias desempenham um papel importante nessa área, ou a alteração que pressupõe terá de acontecer a um nível muito superior?

As misericórdias são emanações directas das populações. Surgiram e devem continuar a surgir e a actuar como formas de organização das comunidades locais, para que, com os recursos locais, respondam às solicitações da comunidade. Assim, os modelos universais, como os de compromisso ou comportamento, são comuns, mas a realidade de cada uma é diferente. Da própria cultura essencial das misericórdias faz parte a diferença.

Como analisa o papel desempenhado pelas misericórdias em Portugal, sobretudo ao nível do Interior, regiões, no mínimo, tidas como mais pobres?

Houve períodos da história em que o papel das misericórdias foi mais relevante ou visível do que noutros. Hoje, neste processo de globalização e de esforço pelo acesso de todos aos bens que de todos são, as misericórdias têm características e condições que são quase modelares para uma boa resposta aos problemas sociais. São das instituições que, vindo do passado, têm mais características de modernidade.

O papel das misericórdias não choca com uma sociedade altamente competitiva, baseada nos valores económicos onde acontecem fenómenos, como a falência das famílias devido ao excessivo endividamento? E não terá a banca um certa culpa nesse transtorno social?

Tenho uma ligação à banca, mas sempre à banca social, exactamente motivado pelo ideal de uma economia social e de solidariedade. Defendo a existência de um mundo plural, em que convergem os esforços do sector público, do sector social e do privado, cada um com a sua filosofia, mas actuando todos no grande todo. É evidente que hoje domina o neo-liberalismo de motivação capitalista que de protecção às forças do trabalho, ao indivíduo e à pessoa humana. Não há perdão das dívidas aos países pobres, não se encontram soluções que prevejam cláusulas sociais e a entreajuda entre os povos, nem se definem normas de evitar que grandes empresas condicionem, por exemplo, a distribuição de medicamentos ou alimentos a toda a humanidade. Isso é preocupante, à semelhança da falta de protecção ao ambiente. Tudo isto é preocupante. Mas também me preocupa que a economia possa ser um instrumento que os detentores do capital usem para dominar o resto da humanidade.

Como é que se pode agir para evitar que a lógica neo-liberal se afirme por essa lógica de dominadores e dominados?

É necessário encontrar aquilo que o Papa João Paulo II diz e muito bem, ou seja, uma nova forma de civilização, uma civilização de amor, não conduzida por interesses, mas por afectos, pelo respeito por todos os cidadãos, independentemente da sua cultura ou país. Todo o ser humano deve ter condições de se realizar na liberdade, na igualdade e na fraternidade, que não é apenas um desejo, mas também um direito.

Estando ligado ao nascimento de um pequeno País como Timor, pensa que será possível gerar uma sociedade com esses valores, e qual será aí o papel de Portugal?

Já não estou ligado a Timor em sentido administrativo e jurídico, mas em sentido afectivo. Verifiquei com grande júbilo que os portugueses souberam relacionar-se com os timorenses, não por motivos de interesses ou juridico-políticos, mas por motivos de afecto. É exactamente este tipo de relacionamento que preconizo e aplaudo para o mundo. É preciso que os países mais desenvolvidos saibam reagir desse modo em relação a povos que estão em risco de guerra, de pobreza... O relacionamento entre Portugal e Timor, sobretudo até à independência, foi um relacionamento exemplar, que não deve decrescer. Ainda há dias o dr. Mota Amaral, em visita a Timor, dizia que é preciso que este apoio não diminua de maneira nenhuma.

Relativamente a Portugal, propriamente dito, estando ligado ao futebol (é membro do Conselho Leonino), como encara as guerras entre clubes, ao mais alto nível, sobretudo quando vamos receber o Euro 2004?

Tudo isso deve ser reduzido à sua própria dimensão e escala. O povo português soube conviver com diversas religiões, povos e práticas, sabe que o fenómeno desportivo deve traduzir a convivência harmoniosa e pacífica, em que os adversários não são inimigos. Infelizmente, o futebol atingiu um auge de linguagem, luta de interesses e conflitos entre pessoas que é altamente contrário à cultura tradicional dos portugueses. Os portugueses são gente de bem, que convivem uns com os outros e não fazem da bola armas de arremesso para se agredirem mutuamente. O clima que está a atingir nesta área é um clima anti-português, altamente indesejável. o Euro 2004 deve ser um momento de partilha e dignidade como foi a Expo '98. Cada português deve saber ganhar, saber perder ou às vezes até saber empatar, coisa que alguns não sabem. Nem sequer empatar!

Os portugueses revelam uma enorme desconfiança em relação aos políticos. Dado que tem convivido com muitos políticos que desempenharam ou desempenham funções ao mais alto nível, pensa que há razões para existir essa desconfiança?

Em todo o mundo há um grande fosso entre a política e a vida dos cidadãos, o que é eventualmente agravado pela não compreensão dos papéis diferentes do Estado e da sociedade civil. São duas realidades diferentes, que se devem inter-relacionar em cooperação. Como alguns políticos servem o Estado esquecendo a autonomia, especificidade e vocação da sociedade civil, a população desconfia e tem motivos para não confiar nos políticos. Esta é uma das crises do tempo presente, mas não a única, que tem de ser ultrapassada. Os cidadãos que, enquanto políticos, servem a comunidade, devem saber fazê-lo e não servirem apenas aos seus partidos ou aos seus próprios objectivos políticos, pois os objectivos não são um fim, mas um meio.

A desconfiança dos portugueses alarga-se também à justiça e sobretudo devido aos processos mais mediáticos. A justiça será julgada pelos cidadãos apenas devido a um processo?

Isso não é possível. Portugal está a precisar de uma lição, que passa por entender a separação dos poderes, que vem desde Motesquieu. Não há quatro soberanias. Há apenas uma, que é a do povo português. Agora, ela é exercida por um conjunto de quatro órgãos distintos, autónomos, separados. Quando algum deles está em crise ou em posição de excessivo protagonismo, deve encontrar apoio nos outros órgãos de soberania, para que tudo se encontre equilibrado e harmónico. E se alguém é primus inter pares entre os órgãos de soberania, não é de certeza a magistratura. É o Presidente da República.

 


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