Director: João Ruivo    Publicação Mensal    Ano VII    Nº72    Fevereiro 2004

Cultura

GENTE & LIVROS

Camilo José Cela

«O Vagabundo tem para seu uso pessoal, e repete-o aqui, que foi nos touros de Guisando que, melhor ou pior, se fundou Espanha. Sem a dura cabala dos touros de Guisando, Espanha não teria sido Espanha e outra coisa - ninguém se deve atrever a jurar se melhor ou pior - viveria hoje nesta nossa parcela.

No caminho de Tiemblo levantou-se uma brisa que varreu as melancolias da cabeça do vagabundo. Um cão sem dono, rabão e cor de canela, farejava o campo com o nariz virado para donde vinha o vento.».

In Vagabundo ao 
Serviço de Espanha



Prémio Nobel da Literatura de 1989, Camilo José Cela nasceu em Iria Flavia, na Galiza, a 11 de Maio de 1916. Aos nove anos de idade Camilo José Cela vai com a família para Madrid e aos quinze anos uma doença pulmonar obriga-o a um internamento num sanatório. Nos períodos de repouso, impostos pela doença, dedica-se à leitura de Cervantes, Quevedo e Ortega y Casset, leituras que marcariam a sua personalidade literária. 

Em 1934 matricula-se em Medicina, mas depressa abandona, e começa a assistir às aulas de Literatura Espanhola Contemporânea do professor Pedro Salinas. “O Argentino”(1935) é a sua estreia em poesia, na revista de La Plata.

Com a Guerra Civil Espanhola ingressa no exército nacional, é ferido e hospitalizado. Quando sai do hospital inicia o estudo em Direito que posteriormente também abandona.

Com a publicação do seu primeiro romance, “A Família de Pascual Duarte” (1942), causa uma revolução no delapidado panorama literário espanhol do pós guerra. De um realismo brutal e sem concessões a escrita de Cela origina uma corrente denominada “tremendismo”. “A Colmeia” (1951), um dos seus melhores romances, é publicado em Buenos Aires, devido a problemas provocados pela censura espanhola.

Em 1956 Cela muda-se para Palma de Maiorca, aí edita a revista Papeles de Son Armandans, da qual é director.

Com um discurso sobre “A obra literária do pintor Solana” ingressa na Real Academia Espanhola em 1957.

Camilo José Cela ganha em 1984 o Prémio Nacional de Literatura, em 87 o Prémio Príncipe das Astúrias das Letras e em 95 o Cervantes. « Em Espanha quem resiste ganha.» é talvez a frase mais emblemática de Camilo José Cela que viria a falecer a 17 de Janeiro de 2002.

Autor de romances, peças de teatro, poesia, livros de viagens, artigos e ensaios, a sua vasta bibliografia integra os romances: “Pavilhão de Repouso” (1943); “Novas Andanças e Desventuras de Lázaro de Tormes” (1944); “Catira” (1955); “Ofício de Trevas” (1973); “Mazurca para Dois Mortos” (1983); “Cristo Versus Arizona” (1988); “A Cruz de Santo André” (1994).

Os livros de viagens “Viagem a Alcarria”(1948), “O Galego e sua Quadrilha”(1949), “Judeus Mouros e Cristãos” (1956), Viagem ao Pirinéu de Lérida (1956) e Primeira Viagem Andaluza: notas de um vagabundo por Jaén, Córdoba, Sevilha, Huelva e suas Terras (1989) reunidos no livro “Vagabundo ao Serviço de Espanha”.

“Vagabundo ao Serviço de Espanha”. O vagabundo é um homem magro, por vezes come e outras não. Nas suas andanças depende da boa vontade de quem encontra e o acolhe. O vagabundo viaja a pé, só raramente à boleia. O vagabundo está sozinho mas por vezes também encontra companhia. Ele ensina-nos o encanto de Espanha e como afirma a páginas tantas «todos os países deviam ter um vagabundo».

Eugénia Sousa
Florinda Baptista

 

 

 

Livros

RVJ - EDITORES. “Santa Casa da Misericórdia de Castelo Branco 490 Anos” de João Henriques Ribeiro. O autor conta-nos a história da Misericórdia de Castelo Branco, desde a sua fundação até aos dias de hoje, e consequentemente uma outra História, a do país. «Não é possível escrever a história de Portugal sem as Misericórdias» - Alexandre Herculano. A obra pode ser adquirida na Santa Casa da Misericórdia de Castelo Branco. 

EUROPA-AMÉRICA. “Eu, Claúdio” de Robert Graves. Cláudio era o imperador que não o queria ser, Robert Graves o autor de um magnífico romance biográfico. Cláudio o historiador gago, coxo e aleijado que haveria de desempenhar um papel fulcral na história de um dos maiores impérios da História. «Escrito há mais de seis décadas, Eu Claúdio permanece como um dos mais soberbos romances históricos alguma vez escritos».

PIAGET. “Semiótica e Filosofia da Linguagem” de Umberto Eco. Autor de romances tão famosos como “O Nome da Rosa” ou “Baudolino”, Umberto Eco é menos conhecido por ser titular da Cadeira de Semiótica na Universidade de Bolonha. O fascínio pela linguagem está tão presente nos seus romances como na sua vida. “Semiótica e Filosofia da Linguagem” é uma reflexão fundamental organizada em redor dos termos clássicos (signos, metáforas, símbolo código, significados) estudados tanto pela filosofia como pela semiótica.

ASA. “A Louca da Casa” de Rosa Montero. Este é o livro mais intimista da escritora espanhola. O sonho, a fantasia, o medo e as dúvidas enquanto escritora a sua poderosa e envolvente relação com a imaginação. Um ensamblamento de criação artística e memórias secretas da autora «A imaginação é a louca da casa» - Santa Teresa de Jesus. E por vezes também a senhora. 

GRADIVA. Um Só Mundo - A ética da globalização - de Peter Singer. Qual é o significado de uma ética global no mundo de hoje? O livro aborda quatro grande questões mundiais: as alterações climáticas a ocorrer em todo o globo; o papel representando pela Organização Mundial do Comércio; a aplicação dos Direitos Humanos; a intervenção com fins humanitários e a ajuda externa.

 

 

 

BOCAS DO GALINHEIRO

Um olhar sobre Takeshi Kitano

Quando estas linhas chegarem às bancas, já passou no S. Tiago, na sessão especial de quarta-feira, “Zatoichi”, de Takeshi Kitano, Leão de Prata no último Festival de Veneza, uma incursão do realizador japonês na tradição do seu país dando vida a esta popular personagem do seu país, Zatoichi, o velho cego, massagista, que gosta de jogar e de beber “saké”, e que maneja o sabre como ninguém, e que nas décadas de 60 e 70 foi estrela de uma popular série de televisão numa mão cheia de filmes protagonizados então por Shintaro Katso. Trata-se afinal da intenção manifestada pelo cineasta de recuperar a tradição dos filmes de artes marciais. Só que “Zatoichi” não é apenas mais um filme de época. É um filme com a marca Kitano em que a violência e o sangue são mesmo pintados a vermelho vivo e que na eterna luta entre bons e maus a figura do vingador mais cedo acaba por aparecer. O resto podemos imaginar, conhecendo-se uma boa parte da obra anterior do japonês, só que neste caso ainda podemos ser surpreendidos pelo humor de Kitano, quando tudo acaba num burlesco número de sapateado. Ficaram a ganhar todos os que foram ver o filme.

Takeshi Kitano é uma personagem incontornável no seu Japão, curiosamente não como cineasta, mas sim pelos populares “The Two Beat”, uma parelha de cómicos que formou com Jiro Kaneko nos espectáculos de variedades, “Manzai” , cujo êxito na televisão foi arrasador, e, a partir dos quais, adoptou o nome de Beat Takeshi. Cómico, cantor, actor, a sua linha de intervenção estende-se ainda pelos campos da poesia, da literatura e da crónica jornalística. Um criador multifacetado. O cinema veio mais tarde. Primeiro como actor, de que se podem destacar as suas presenças em “Feliz Natal Mr. Lawrence”, 1983, de Nagisa Oshima, onde interpreta o violento sargento Hara, papel que o dá a conhecer fora do Japão, e “Johnny Mnemonic”, 1995, de Robert Longo, uma incursão de Kitano na filmografia de Hollywood, numa película pouco relevante, depois como realizador, etapa que inicia em 1989 com “Sono Otoko Kyobo Ni Tsuki/Violent Cop”.
Nascido em 18 de Janeiro de 1947 em Adachi-Ku, um bairro do centro de Tóquio, onde pairava e/ou dominava a figura do yakuza, o gangster japonês, terá sido aí que se terá inspirado para alguns dos seus filmes que repegam a tradição dos filmes de yakusa com uma simplicidade visual e narrativa impar. É assim com “Violent Cop”, um polícia talvez ao estilo do “Dirty” Harry Callaghan de Clint Eastwood, displicente para com os seus superiores, implacável para com os delinquentes, será assim nos outros filmes, seja ele polícia ou bandido, os seus métodos serão sempre pouco ortodoxos. Em “Boiling Point”, o seu segundo filme, de 1990, o burlesco e a violência cruzam-se de uma forma que marca o futuro do cinema de Kitano em que estas duas perspectivas estarão (quase) sempre presentes. Aqui o seu yakuza, primário e hiperviolento, acaba por morrer antes de conseguir levar a cabo o seu trabalho, num filme semeado de gags, ao bom estilo dos dois beat, situação que se inverte em “Sonatine, filme em que o Yakuza, tenta, sem o conseguir, ou se quisermos, consegue-o da pior forma, mudar de vida. Um dos filmes considerados mais influentes de Kitano, apesar de não ser o seu melhor.

O reconhecimento de Takeshi Kitano no Ocidente e particularmente em Portugal aconteceu com “Hana Bi – Fogo de Artifício”, 1997, Leão de Ouro em Veneza, uma simbiose perfeita entre o filme de acção e uma história de amor entre o ex-polícia e a mulher, doente em fase terminal, ou, sendo o caso, um misto de “Violent Cop” e “Sonatine”.

Se em “Kids Return”, 1996, o realizador faz uma incursão autobiográfica na adolescência, depois do fracasso comercial de “Getting Any?”, 1994, num filme em que entra como actor, e que através de dois jovens que conseguem êxitos diferentes no mundo do boxe, acabam por ter um final muito semelhante nos trilhos duros do dia a dia, no qual o mundo dos yazuza está sempre presente. Um flash back plano, estilo sempre presente nos filmes de Kitano. A procura é também o mote de “O Verão de Kikujiro”, na viagem de um miúdo que quer conhecer a mãe que nunca viu, acompanhado por um Kitano boçal e sem escrúpulos, numa viagem singular e cheia de surpresas.

“Brother” e “Dolls”, são os filmes do autor que antecederam “Zatoichi”. Duas incursões em mundos antagonicamente diferentes. O primeiro mostra-nos o yakuza que se intromete nas lutas de gangsters em Los Angeles, é o primeiro filme de Kitano feito nos Estados Unidos, mas em que mantém intacto todo o seu estilo, tal como o yakuza que implanta no organização do irmão os métodos japoneses, ao passo que o segundo é uma incursão do autor no filme romântico, inspirado nas marionetas do teatro bunkaru e Kabuki, onde uma das suas avós tocava shamisen.

Ainda e sempre a vida como inspiração nessa indecifrável fronteira entre a realidade e a ficção, que atravessam a filmografia de Kitano, melhor dizendo, de Beat Takeshi.

 


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