Director: João Ruivo    Publicação Mensal    Ano VII    Nº82    Dezembro 2004

Editorial


Lucidez e a cegueira

Por ventura será lugar comum afirmar-se que a escola sofreu, ao longo de todo o século passado, transformações profundas. O pior é que não é menos acertado anotar que poucas novidades se observam quando, passadas décadas, entramos novamente numa sala de aula. 

Na verdade não se revela difícil convergir numa opinião crítica a um certo tipo de escola que muitos consideram demasiado racional, tecnológica, super especializada e impregnada de estereótipos administrativos e sexistas. Sobretudo quando nesse género de instituições educativas se instala no mundo interior dos docentes um efeito cuja perversão ainda está por medir: pese embora tudo o que aconteça na realidade diária dessas escolas, os professores estão convencidos de que a sua profissionalidade e a sua qualidade de trabalho dependerá, mais que tudo, das suas competências “operárias” que os conduzem à aplicação de técnicas rigorosas através das quais conseguirão “produzir” a aprendizagem dos seus alunos.

Provas? Há sempre, e muitas, para os mais cépticos: primeiro, todos abominam os “receituários”, todavia quase sempre vivem dependentes dessa normatividade que proporciona grande parte dos conhecimentos que guiam a acção docente; segundo, surgem os “tradutores-especialistas”, aqueles que acreditam na voz especializada, enquanto intermediário insubstituível entre a origem científica do conhecimento e a correcta interpretação e divulgação das normas pedagógicas; terceiro, as reformas alteraram o discurso e as linguagens, porém o “processo de cretinização técnico-burocrático” do trabalho docente permanece, no substancial, inalterável. Resultado: a lucidez demasiado disciplinar e especializada conduz, invariavelmente, à cegueira no que respeita à apreciação do global, do geral e da diferença.

Nesta transformação profunda, é certo que a ciência substituiu a religião quanto à construção do discurso pedagógico. Todavia novas formas de misticismo afloraram sempre que, no terreno institucional, se procedeu à aceitação dos poderes, aliados aos saberes, como meios únicos de legitimação de uns e dos outros.

Para que a Escola entre neste terceiro milénio numa via de “transformação positiva”, urge que professores e educadores aceitem alguns desafios. Desde logo, importa nivelar o estatuto da “pedagogia oficial” com o do “conhecimento prático” dos docentes. Depois, exige-se o rápido reconhecimento da maioridade dos profissionais do ensino. Reconhecimento esse que propicie a conquista da autonomia para pensar o próprio pensamento, autonomia para reflectir sobre o conhecimento elaborado, autonomia para construir novo pensamento com base no conhecimento e na maturação da própria acção docente.

No fundo, encontramo-nos perante um desafio, lançado aos “práticos”, para que “conquistem”, dentro das escolas, todas as “possibilidades” que lhes permitam a elaboração de “conhecimento”, através do qual sustentem e teorizem essa mesma prática.

É que a separação entre pensamento e acção, como referia Langevin, implica que a educação não seja mais uma preparação para agir. Implica a aceitação de dois ensinos distintos: um especulativo, o outro prático, um fornecendo o espírito e o outro a letra, um o método, o outro os resultados. E tudo isto nos empurra para o sublinhar de uma das maiores contradições que nos podem ser imputadas a nós, educadores: a incapacidade para integrar na nossa prática quotidiana, de um modo coerente, o que pensamos e o que fazemos.

João Ruivo
ruivo@rvj.pt


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