GENTE & LIVROS
Sophia de Mello
Breyner

Porque
Porque os outros se mascaram e tu não/ Porque os outros usam a virtude /
Para comprar o que não tem perdão./ Porque os outros têm medo mas tu não.
Porque os outros são os túmulos caiados/ Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.
Porque os outros se compram e se vendem/ E os seus gestos são sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.
Porque os outros vão à sombra dos abrigos/ E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.
In - No Tempo Dividido Mar Novo
Sophia de Mello Breyner Andresen
Poetisa, ensaísta, contista e tradutora, Sophia de Mello Breyner Andresen nasce a 6 de Novembro de 1919 no Porto e morre a 2 de Julho de 2004.
Do Bisavô dinamarquês Jan Henrik, herda o nome Andresen, do avô Mello Breyner, o amor à poesia. Antes mesmo de saber ler, Sophia já recitava Camões e Antero, por iniciativa do avô. Os primeiros poemas escreve-os com 12 anos. Estuda até aos 17 anos no Colégio do Sagrado Coração de Maria, no Porto, seguindo em 1936 para Lisboa, onde Estuda Filologia Clássica na Faculdade de Letras. Não termina o curso, três anos depois regressa ao Porto. Casa com o advogado e jornalista Francisco Sousa Tavares e nessa altura muda-se definitivamente para Lisboa. Poesia (1944), o primeiro livro publicado, é uma edição de autor de 300 exemplares, que o pai de Sophia patrocinou. A partir desta data não mais pára de publicar. Mãe de cinco filhos, eles foram a sua motivação para escrever livros infantis. A inspiração para a poesia, foi buscá-la sobretudo ao mar.
Activista da Liberdade, antes do 25 de Abril a escritora pertence à Comissão Nacional de Apoio aos Presos Políticos, após essa data, chega mesmo a desempenhar cargos de deputada pelo PS à Assembleia Constituinte. Em 1999 Sophia ganha o mais prestigiado prémio nacional de literatura, o Prémio Camões.
A sua vasta bibliografia integra na poesia O Dia do Mar (1947); Coral (1950); No Tempo Dividido (1954); Mar Novo (1958); Livro Sexto (1962); O Nome das Coisas (1977); Histórias da Terra e do Mar (1984), Ilhas (1989) e a antologia, Obra Poética (1990); no ensaio O Nu na Antiguidade Clássica (1975); na literatura infantil O Rapaz de Bronze (1956); A menina do Mar (1958); A Fada Oriana (1958); Noite de Natal (1960); e O Cavaleiro da Dinamarca (1964).
«A poesia é das raras actividades humanas que, no tempo actual, tentam salvar uma certa espiritualidade. A poesia não é uma espécie de religião, mas não há poeta, crente ou descrente, que não escreva para a salvação da sua alma - quer a essa alma se chame amor, liberdade, dignidade ou
beleza» - Sophia de Mello Breyner.
Eugénia Sousa
BOCAS DO GALINHEIRO
A vida é um milagre

O título do último filme de Emir Kusturica, bem podia ser de Frank Kapra. Apesar da guerra, a vida pode ser maravilhosa e há sempre lugar para o amor. Estamos na Bósnia, corre o ano de 1992. Luka, um engenheiro sérvio de Belgrado, vai com a mulher, Jadranka, cantora de ópera, e o filho, Milos, para uma aldeia no meio do nada, para ajudar a construir uma linha de caminhos-de-ferro que transformará a região num local de turismo. Cego pelo seu optimismo natural, não presta atenção aos rumores sobre a guerra que se avizinha, cada vez mais persistentes. Mas quando eclode o conflito, a sua vida desmorona-se. Jadranka desaparece com um músico, e Milos é chamado para combate. Ele o que queria era ser jogador de futebol no Partizan de Belgrado.
Sempre optimista, Luka espera o regresso da mulher e do filho, mas Jadranka não volta e Milos é feito prisioneiro. Os sérvios confiam então a guarda de Sabaha, uma refém muçulmana, a Luka, a qual deverá servir de moeda de troca para recuperar Milos. Mas, Luka rapidamente se apaixona por
Sabaha.
Mais uma vez com os conflitos bálticos como pano de fundo, Kusturica constrói um intensa história de amor, uma espécie de Romeu e Julieta, a referência a Shakespeare feita por Jadranka não será assim tão por acaso, mas, mais do que o par romântico, o dilema de um homem apaixonado que tem que optar entre o amor que sente pela mulher que ama e o filho por quem é suposto trocá-la para o ter de volta, um homem que, como toda uma geração de jugoslavos, não tinha consciência, nem queria acreditar nessa guerra que lhe ia cair em cima. Daí o desespero, daí a vontade de deixar tudo. Porém, e, como se trata de uma história de amor em tempo de guerra, o nosso herói é salvo pelo seu anjo da guarda, no caso uma burra! Mais uma vez a componente onírica que perpassa todos os filmes de Kusturica, assente em tomas excessivas e barrocas, muitas vezes a roçar o humor non-sense, num ritmo frenético ao som da fanfarra, uma espécie de Kusturica por ele mesmo. A meio caminho de “Underground” e “Gato Preto, Gato Branco”, este “A Vida é Um Milagre” não será o melhor de Kusturica, mas é um filme com uma grande vitalidade, mas acima de tudo, fiel ao estilo do realizador.
Nascido em Sarajevo, na antiga Jugoslávia em 1955, Emir Kusturica, depois de estudos cinema em Praga, estreou-se na realização em 1981 com “Lembras-te Dolly Bell ?”, uma mordaz crítica ao comunismo, linha que voltaria a marcar o seu filme seguinte, “O Pai Foi em Viagem de Negócios”, com o qual ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes, uma visão, através dos olhos de uma criança, de uma Jugoslávia dividida entre titistas e estalinistas. Com “O Tempo dos Ciganos” (1989) volta a atingir um ponto alto da sua cinematografia, a que alia uma homenagem a um povo que admira, numa fita vibrante e cheia de ritmo, há quem fale de folclore, mas também visionária. Os chavões dizem-lhe pouco, apesar de ter ameaçado abandonar o cinema. Mas isso foi depois.
Embalado pelo êxito destes filmes dá o salto até aos states para filmar “Arizona Dream (1992), um filme de alto budget e com um elenco de se lhe tirar o chapéu: Johnny Depp, Faye Dunaway , Jerry Lewis, Lili Taylor e Vincent Gallo, entre outros. Mas nem eles lhe valeram. O filme foi um fracasso. A fita de um desadaptado, porque rasgos de bom cinema existem e não são poucos. Falta um fio condutor à fábula. Coisa rara em Kusturica. Afinal o sonho americano não é para todos.
Depois deste fracasso americano Kusturica voltou à Europa e à sua Jugoslávia em desagregação para filmar “Underground – Era uma Vez um País” (1995) no momento da crise - da desintegração de um país como gigantesca e circence farsa. “Underground” é uma comédia negra passada em Belgrado. Um grupo de resistentes jugoslavos refugia-se em abrigos subterrâneos durante os bombardeamentos nazis em 1941. Passam-se 50 anos e quando voltam ao exterior... a guerra continua. Durante três turbulentas horas assistimos atónitos a esta trágica e comovente espera que a II Guerra Mundial acabe. É a caricatura do país, agora retalhado, mas acima de tudo uma feroz crítica à guerra, porque feita em tons carnavalescos e num ritmo infernal, e à agonia de uma nação que já não é. Claro que as críticas foram duras. Acusado de ser pró-sérvio, o realizador fez a tal ameaça de abandono. Não fugiu. E, ainda bem porque em 1998 volta ao tempo dos ciganos com o extraordinário e alucinante “Gato Preto, Gato Branco”. Numa atmosfera em que a palavra surrealismo não é vã, Kusturica disseca o pós guerra , ou melhor, o caos provocado pelo desmoronar duma nação, através de um registo circense, ele há a cantora que arranca pregos com o rabo, ele há a fanfarra suspensa nas árvores, os encontros, os desencontros, os casamentos e os contra casamentos, as pequenas delinquências, tudo isto num registo endiabrado e vertiginoso, ele há sempre a “presença” de Fellini, Kusturica não o esconde, mas, há, acima de tudo a presença de um cineasta livre que goza a fazer filmes e faz-nos gozar a nós que os vemos. Afinal o que é o cinema?
Até pró ano e bons filmes!
Luís Dinis da Rosa
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