D. MANUEL MARTINS,
EX-BISPO DE SETÚBAL
A sociedade está mal
disposta
D. Manuel Martins continua “sem papas na língua”: a sociedade portuguesa está desanimada, nervosa e indisposta. Em entrevista exclusiva ao
Ensino Magazine, o antigo Bispo de Setúbal, que, há anos atrás, denunciou a fome no seu distrito, critica os políticos, acusando-os de se preocuparem mais consigo próprios e com os partidos do que com os cidadãos.
À Igreja de que faz parte, D. Manuel Martins deixa um conselho para que “reme” contra a “maré” e alerte consciências.
Como avalia o momento actual da sociedade portuguesa?
Em termos gerais, a minha análise do que se tem estado a passar conclui que a nossa sociedade está mal disposta e dominada pelo desânimo e descrença.
As pessoas sentem-se nervosas, entram muito facilmente em conflitos com as outras. Sem ser uma situação dramática, é, no entanto, preocupante.
Existem problemas não apenas ao nível económico – e isso é consensualmente reconhecido – mas também em termos políticos e sociais.
Defendo que deveria ser realizado um estudo aprofundado, por parte dos responsáveis pelo país, no sentido de determinar, com o máximo de rigor e clareza, quais os motivos que se encontram na origem deste estado de coisas. É uma tarefa de alguma urgência, para que se consiga atalhar a resolução dos problemas enquanto é tempo.
Os portugueses estão mais individualistas?
Não tenho dúvidas disso. Vivemos, hoje, num mundo em acelerado ritmo de mudanças, instalando-se uma vertigem do tempo que antigamente se desconhecia. Estamos todos a ser colocados em causa pela nova situação criada. Por outro lado, a sociedade moderna trouxe uma imensidão de solicitações a que poucos ou mesmo ninguém consegue escapar.
Os portugueses estão não apenas mais individualistas e egoístas, como também mais isolados. Os cidadãos “agarram-se” aos computadores e outros dispositivos tecnológicos – repare que não nego as vantagens dos mesmos – e acabam por não comunicar com o outro.
Curiosamente, os meios de comunicação em vez de estarem a incrementá-la, estão a tornar os seres humanos mais distantes uns dos outros, o que é muito negativo.
O consumismo domina em todo o seu esplendor e pouco espaço há para aquilo que não pertence à ordem do materialismo. É preciso voltar a apostar nos valores do Homem e em elementos éticos que se encontram cada vez mais diluídos no mundo actual.
Neste contexto, que papel está reservado à Igreja?
A Igreja possui uma grande responsabilidade, na medida em que é uma instituição fundamental e basilar na sociedade humana, que pode e deve funcionar como um seu farol orientador. No entanto, não haja ilusões: a Igreja também se deixa influenciar pelo ambiente dominante de um certo desencanto. Cabe-lhe “remar contra a maré” e lançar alertas sobre a necessidade dos homens não percorrerem caminhos que lhe serão prejudiciais.
É uma missão em que é insubstituível: tem de “acordar” as pessoas para o carácter imprescindível de olharem para os outros com uma nova atitude, de maior compreensão. É preciso criar um novo espírito em que a dádiva ao próximo seja uma realidade consistente e não algo de teórico mas pouco ou nada cumprido.
Os portugueses estão a afastar-se do catolicismo que a esmagadora maioria afirma professar?
Sim, na medida em que a sociedade do nosso país caminha crescentemente para o reforço do individualismo, o negativismo e a descrença. Deus é o contrário de tudo isso: é esperança, alegria, motivação e altruísmo. A consideração do catolicismo como largamente maioritário em Portugal, sendo estatisticamente correcto, tem de ser analisada com cuidado e profundidade, já que muitos comportamentos adoptados não estão de acordo com isso.
É preferível estudar o assunto com grande rigor e nas suas múltiplas vertentes, com a maior atenção, porque o que está em causa não se compadece com averiguações superficiais e algo desadequadas da realidade.
No entanto, é de salientar o facto do referido individualismo e desânimo não ser uma característica unicamente da sociedade portuguesa. O fenómeno atinge muitas outras, um pouco por todo o mundo. Podemos reconhecer que são elementos, infelizmente, bastante comuns e à escala planetária, o que nos desafia a tomar medidas para inverter o rumo dos acontecimentos e sobretudo mudar o Homem no seu interior, que é aquilo que ele tem de mais essencial.
Quais os principais problemas do nosso país que mais o preocupam?
Há muitos. Subsistem questões de extrema importância que tardam em ser solucionadas, em múltiplas áreas. Na Educação, na Saúde, no acesso à Justiça…é vasto o conjunto de domínios em que se revela necessário introduzir alterações de vulto, para que se consiga ultrapassar problemas, em muitos casos, de ordem estrutural.
Ainda existem muitas situações de pobreza que nos interpelam, há diferenças sociais significativas que não são justas e, por vezes, ofendem a dignidade do ser humano e os direitos mais elementares que possui ou deveria ter.
De que forma encara a actuação da classe política dirigente em geral na resolução dos problemas do nosso país?
Não me cabe a mim, naturalmente, formular juízos muito aprofundados sobre a acção dos políticos. Mas, penso que estão mais envolvidos e empenhados em tratar das suas questões próprias, das dos partidos a que pertencem e dos conflitos e boas relações entre todos eles do que esforçados à procura de soluções para aquilo que aflige e preocupa os portugueses. Na minha perspectiva, isso é incontestável e é pena que assim seja, sobretudo num momento como o actual, em que existem dificuldades óbvias do nosso país a diversos níveis.
É lamentável que os nossos políticos não se encontrem à altura do que lhes seria exigível e expectável. A sua preocupação central deveria ser o bem comum, o desenvolvimento do país e dos portugueses, de forma harmoniosa e correcta, numa missão que é muito nobre se executada com a dignidade e empenhamento devidos.
Creio que os portugueses já compreenderam bem os políticos que têm. As acções destes demonstram bem o interesse que possuem na resolução dos problemas colectivos…
É preciso um Homem novo?
Teoricamente não haja dúvida que sim. Mas, esta é uma ideia algo desligada da realidade concreta. O Homem não consegue modificar-se por completo de um momento para o outro, como que num passo de magia. O que deve é melhorar-se a si próprio, como Pessoa, em cada dia que passa, procurando conhecer o seu interior e o dos outros. Daí pode nascer um equilíbrio consigo mesmo, com o próximo e o mundo que nos rodeia. De qualquer forma, é inquestionável que a tarefa é difícil e implica de todos e de cada um em particular mudanças muito importantes nas suas ideias, atitudes, quadros mentais e sobretudo de valores. E, claro, implicando sempre mutações nos comportamentos adoptados. As acções têm de ser correspondentes a tudo isso para que faça sentido as modificações interiores operadas.
É uma ideia que defendo e que tanto é válida para Portugal como para as outras nações. Grande parte das questões que se colocam aos portugueses não diferem das que se impõem à escala mundial ao Homem.
Jorge Azevedo
Pedro Cardoso (fotos)
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