Director: João Ruivo    Publicação Mensal    Ano VI    Nº68    Outubro 2003

Entrevista

ANTÓNIO MARINHO ANALISA O ESTADO DA JUSTIÇA EM PORTUGAL

"O Centro não forma magistrados,
mas sim majestades"

Advogado e jornalista, António Marinho é um dos comentadores do momento em relação aos vários processos judiciais que têm alimentado a Comunicação Social, bem como em relação ao debate sobre a justiça que foi desencadeado nos últimos meses.

Sem papas na língua, analista incisivo, fala este mês ao Ensino Magazine, para concluir que uma parte do sistema de justiça está podre, ao mesmo tempo que considera que a formação de magistrados e advogados está melhor, mas não será a ideal.

De caminho, deixa alguns recados aos jornalistas, os quais devem adquirir formação em matéria de legislação judicial, a fim de conseguirem fazer relatos mais sérios e livres de erros de interpretação em relação aos muitos processos judiciais que hoje estão mediatizados. Uma mediatização que não considera um problema.

A justiça está muito mediatizada em Portugal do ponto de vista de comentários na Comunicação Social acerca dos processos. Pensa que advogados, jornalistas, juízes e o cidadão comum estavam preparados para esta mediatização?

O facto da Comunicação Social falar sobre o que se passa dentro dos tribunais, da forma como é administrada a justiça, está muito bem. Se a justiça é administrada em nome do povo, é importante que este saiba a forma como é administrada, o que não seria possível se apenas tivesse acesso a essa informação quem se deslocasse às salas de audiências. É, por isso, bom que os órgãos de Comunicação Social procedam à transmissão. O mal é que a generalidade dos jornalistas portugueses não tem preparação técnico-jurídica para compreender o que se passa dentro dos tribunais e não se pode noticiar devidamente aquilo que não se entende. É urgente que os jornalistas se preparem tecnicamente.

De que forma se podem preparar melhor os jornalistas?

Se um jornalista vai fazer um relato de um jogo de futebol, tem de perceber um mínimo das regras do jogo, tal como tem de saber um mínimo de economia para noticiar uma sessão da bolsa. Se vai a um tribunal para fazer uma notícia, tem de perceber um mínimo do processo penal, de direito processual, para poder compreender. Devem exigir cursos de formação técnica jurídica, ou estudarem direito. Isso é algo que tem a ver com a classe. Cheguei a criar um curso de jornalismo judiciário em Lisboa, mas depois não pude continuar, porque estava em Coimbra. Mas é preciso promover esses cursos. Todos os jornalistas têm de saber um mínimo de direito, quer para fazerem notícias do que se passa nos tribunais, quer para saberem os limites da sua actividade. É que a sua actividade é muito perigosa, usa instrumentos muito cortantes, que ferem a privacidade, a integridade moral. Mas como tem o dever de informar, deve encontrar o ponto óptimo entre estas duas vertentes. O jornalista tem de saber de tudo.

Mas as notícias surgem em grande ritmo. Como se explica que isso seja feito?

Como não têm preparação técnica, os jornalistas refugiam-se muitas vezes na parte mais formal, nos aspectos mais teatrais da nossa justiça, abordando-os numa perspectiva sensacionalista, muitas vezes sem o rigor factual daquilo que realmente se passou. Acabam por dar uma visão distorcida do que realmente se passou, o que é mau porque induz as pessoas a formar um juízo negativo sobre a administração da justiça.

Serão os jornalistas os principais culpados, ou o próprio sistema de justiça não será o melhor?

Parte do nosso sistema de justiça está podre, pelo que é necessário fazer reformas, mas também há uma parte sã. Importa que nenhuma dessas partes seja exagerada pela Comunicação Social.

Se o sistema não estará tão bem, como deveria, tal não se pode dever também à formação dos actores da justiça?

Tem a ver sobretudo com a formação dos principais agentes da justiça. Os magistrados acabam por ter uma cultura de poder, quando deveriam ter uma cultura de responsabilidade. São autoritários. Não têm uma cultura de respeito pelos direitos fundamentais da pessoa humana, mas sim uma que despreza, em alguns casos, esses direitos. As nossas prisões estão cheias e muitas das pessoas presas estão inocentes. Temos a mais baixa taxa de criminalidade da União Europeia, mas a maior taxa de reclusão, que chega a mais de 135 reclusos por cada 100 mil habitantes, quando a média da União é de 81 por 100 mil. Em Portugal, cada recluso cumpre em média o triplo da pena de prisão que cumprem nos outros países. Temos um tempo médio de reclusão superior a países que têm a prisão perpétua.

Como se explica que estejam tantas pessoas nas prisões?

Em Portugal vai-se para a prisão por tudo e por nada. Os ricos muito raramente, a não ser quando apanhados quase em flagrante e se cometem crimes mesmo muito graves. Os pobres são presos com mais facilidade, por vezes apenas por não terem dinheiro para pagar uma simples multa. Há pessoas a cumprirem penas de prisão de dias por não terem dinheiro para pagar uma multa de 300 ou 400 euros. Isto é gravíssimo, é um desprezo pelos direitos fundamentais da pessoa humana, sobretudo pelo direito da liberdade.

De que forma pode inverter-se essa tendência? Com a alteração da formação dos actores da justiça?

Essa formação pode e deve ser alterada. Tenho proposto como uma das medidas urgentes a extinção do Centro de Estudos Judiciários, pois falhou completamente a sua intenção de formar magistrados. O Centro não forma magistrados. Forma majestades. Entram jovens de 25 anos, licenciados em Direito e saem de lá pessoas com um rei na barriga e um imperador tipo Calígula na cabeça. É preciso recrutar os juízes de outra forma, na sociedade, através de concurso público e tendo em conta a sua maturidade, a sua capacidade de ponderação e humildade. Administrar um poder enorme de privar alguém da liberdade e em alguns países até da própria vida, é algo de grande responsabilidade. Não pode ser feita por meninos vaidosos que se exibem nos tribunais, ofendendo os cidadãos que vão lá exercer direitos.

Isso é algo que irá além da alteração da simples formação dos actores da justiça...

É preciso mudar toda a cultura do sistema judicial, substituindo a cultura dominante, de poder, arrogância, de pesporrência, por uma cultura de responsabilidade, de respeito pela dignidade humana, pela humildade. Além disso, os magistrados só devem progredir na carreira através de provas públicas. Agora progride-se na carreira de uma forma quase medieval, em que os inspectores fazem uma notação, dão uma nota ao juiz. Ora, ninguém sabe quem são os juízes, como progridem. É tudo feito de uma forma quase secreta.

Como classifica a relação entre advogados e juízes, quando aparentemente há uma oposição quase permanente entre pontos de vista?

A questão é que, em Portugal, o juiz não se porta como um juiz, pois tem uma mentalidade de procurador, de polícia. Gostam de dirigir a investigação criminal. Muitas vezes substituem-se aos procuradores na aplicação das medidas mais severas. Ora, o juiz deve estar equidistante entre os interesses punitivos do Estado e da sociedade, representados pelo Ministério Público, e os direitos fundamentais da pessoa humana. Não pode tomar partido até ao instante final. Deve-se presumir sempre a inocência das pessoas até transitar em julgado. Os juízes não devem cometer qualquer acto que leve a que os arguidos possam ser condenados pela opinião pública.

E o que acontece da parte do advogado?

O advogado não tem interesses próprios. Representa hoje um senhorio numa acção de despejo contra o inquilino. Amanhã representa o inquilino contra o senhorio noutra acção. Mais do que um prestador de serviços, é um instrumento fundamental de afirmação e exercício da cidadania. É através dele que o cidadão exerce e defende os seus direitos em tribunal. O conflito que se pretende fazer crer, que é o conflito corporativo entre advogado e juiz não existe realmente entre o advogado e o juiz, mas sim entre o cidadão e o juiz. Exactamente porque os magistrados afirmam o poder. Acontece que esse poder lhes foi dado para administrarem a justiça e resolver o litígio. Mas não é assim. A primeira coisa que o cidadão tem de fazer quando vai ao Tribunal é prestar vassalagem à majestade do magistrado. Isto está errado, porque leva à humilhação do cidadão e dos advogados, algo que não se suporta indefinidamente. Uma pessoa tem de dirigir-se a um magistrado de uma forma que não necessita de usar para se dirigir a um presidente da república, que é só o supremo magistrado da nação. Porquê? São resquícios do feudalismo, da Idade Média, da Inquisição.

Como encara a actual formação dos advogados em Portugal?

A formação dos advogados está a mudar. Era muito má até aqui e quase não havia formação. Agora está a mudar, pelo que o Estado tem de se empenhar financeiramente no apoio ao esforço que a Ordem dos Advogados está a fazer para melhorar a formação. Neste momento há patronos formadores nos tribunais, para dar apoio prático aos colegas. No estágio há uma parte teórica de ensino de direito processual e substantivo. Estão a acontecer grandes melhoras, pelo que os jovens que chegam aos tribunais vão muito melhor preparados do que, por exemplo, aconteceu comigo. Entrei com uma formação má e aprendi praticando, quando uma pessoa já deve ir bem preparada. Ora, em certos casos, entravam advogados oficiosos na sala de audiências, mal preparados e sem sequer conhecerem a acusação ou terem falado com o arguido.

O povo português estará algo descrente no sistema judicial?

Está. O sistema está podre, velho, caduco. Tem mais de 300 anos. Se uma pessoa do tempo do Marquês de Pombal viesse hoje a Castelo Branco, ficava atordoado com o desenvolvimento, com as alterações de comportamento das pessoas, a forma de vestir... com tudo. Mas se entrasse dentro da sala de audiências do Tribunal, sentir-se-ia na mesma. Praticamente está tudo na mesma, das vestes aos discursos, aos formalismos e ritos. O jargão e a liturgia judiciárias são as mesmas. É preciso criar um novo paradigma de justiça, de acordo com os princípios do estado de direito democrático em que vivemos, sendo a primeira regra o respeito absoluto pela pessoa humana, pela vida, liberdade e dignidade.

O outro confronto, pelo menos aparente, surge entre o respeito pelo segredo de justiça e as constantes acusações de violação desse segredo, sobretudo por parte de jornalistas. Não seria preferível que os tribunais tivessem assessores de imprensa?

Podiam e deviam. O segredo de justiça, tal como está, é para proteger a incompetência dos investigadores, dos magistrados, da Polícia. Serve para impedir os cidadãos de exercerem direitos, sejam os arguidos ou as vítimas dos crimes. É algo que foi criado para proteger a eficácia das investigações, mas acaba por ser usado, em alguns casos, para proteger a ineficácia dessas investigações. Assim, o segredo de justiça deve acabar imediatamente e apenas ser decretado em certos casos. Por exemplo, para fazer uma escuta telefónica, não se vai divulgar antes que o indivíduo será colocado sob escuta. Mas depois não pode ser usado para impedir que o escutado aceda ao conteúdo das conversas que lhe gravaram. Há pessoas que vão para a cadeia com base em escutas telefónicas de conversas que podem não ter sido mantidas por elas.

 


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