CRÓNICA
Justiça

A sede de justiça nos dias que correm tornou a dita popular. Digo popular e quero dizer ignóbil, dada a toda a espécie de enxovalho, publicidade enganosa ou objecto de aumento de audiências. Um maná para os média.
Desagrada-me em particular o politicamente correcto devemos confiar na justiça. Mas se assim no-la querem fazer passar, pois que lhes faça bom proveito. A evocação da confiança na justiça é, regra geral, o último recurso de quem está na mó de baixo: uma espécie de fé - que não carece de provas por um milagre em Fátima após longa e dura peregrinação; uma espécie de certeza - que não admite dúvidas - pela vitória portuguesa no Euro 2004, uma espécie de dogma que se quer isso mesmo - da recuperação económica, mas que afecta os mesmos dia após dia.
Mas por que havemos de confiar na justiça? Por que havemos confiar, hoje mais que ontem, na justiça ou nos seus agentes? Será por que é apenas o que nos resta; por não haver outro remédio? Tanta profissão de fé não é caso para desconfiar? Bem sei que as coisas não teriam estes contornos se os acusados fossem os do costume, mas o que fica é um sabor a nacional-cinzentismo, supostamente extinto com o 25 de Abril, que a todos obriga à versão oficial. E isso não é aceitável e muito menos justo.
Nos jornais, nos noticiários é já uma praga. Todo o cidadão que se preze deverá preceder sempre a sua opinião sobre os julgamentos mediáticos com a declaração da moda: devemos confiar na justiça. Ultimamente com a nuança agentes da justiça. Porquê?
A propósito lembro um episódio ocorrido nos idos de sessenta que a muitos marcou pelo ridículo, embora no quadro da normalidade da época.
Eram frequentes as “visitas” da polícia às livrarias, à cata de novas e subversivas publicações. Mais que treinados, os agentes (os Patilhas & Ventoinhas) eram soberanos na inspecção e subservientes relativamente aos mandatários e estes para com os seus superiores e assim por diante: uma perfeita cadeia de nós cegos.
Um dia saiu a fava a uma das principais livrarias da cidade ou pelo menos àquela que mais novidades apresentava em escaparates amplos e vistosos. Foi então que os zelosos agentes obtiveram a maior das apreensões.
Os embrulhos, atados com toda força que a autoridade lhes conferia e passado o respectivo auto, foram levados para a Esquadra perante a impotência do livreiro e o brilho nos olhos de quem os carregava, antevendo talvez já o louvor ou a condecoração a brilhar no peito pelo serviço esforçado a bem da Nação.
Mas foi autêntico balde de água fria quando o chefe desembrulhou todos os volumes da enciclopédia
Larousse,
- Mas o que vem a ser isto?
- inquiriu o graduado de serviço.
- Então chefe, são vermelhos... e la russe...
É claro que os volumes foram devolvidos à livraria com o respectivo pedido de desculpas.
Apesar dos contratempos, desta vez foi feita justiça.

João de Sousa Teixeira
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