Director: João Ruivo    Publicação Mensal    Ano VI    Nº65    Julho 2003

Entrevista

HENRIQUE MENDES ENTRE A RÁDIO E A TV

Ponto de encontro de dois mundos

A Televisão e a Rádio não estão a passar por um bom momento. Quem o diz é Henrique Mendes, que explicou ao «Ensino Magazine» o sucesso do «Ponto de Encontro»: ser um programa ligado ao povo e ao país, permitindo que quem saiu da sua aldeia para o estrangeiro ou para as grandes cidades reveja familiares e amigos de quem nada soube.

Situações abundantes referidas por este profissional de méritos reconhecidos e carreira longa que lembrou ao nosso jornal os primeiros tempos de trabalho. E recordou, com emoção, as suas origens familiares albicastrenses.

Tem ligações familiares à região de Castelo Branco. Que memórias guarda da zona?

Muito boas, sem dúvida. Nasci em Lisboa, mas a minha família paterna é, de facto, de Castelo Branco, uns da cidade, outros de várias aldeias próximas. O meu avô foi jardineiro no Jardim do Paço, de Castelo Branco. Na infância, passava férias na zona; tenho excelentes recordações desses momentos. Há pouco mais de um ano, estive na região, revendo locais que conhecia, pessoas, paisagens e casas. Foi emocionante e muito interessante.

É sempre com bastante agrado que volto à região onde passei tão bons momentos da minha vida.

A sua longa carreira na comunicação social principiou na rádio…

Exacto. Iniciei-me no meio radiofónico nos anos 50. Trabalhei muito a fazer locução na Rádio Renascença até que passei para a RTP, cerca de um ano e meio depois de se terem estreado as emissões de televisão em Portugal. Nessa altura, tudo era muito diferente de hoje. As exigências eram bastante maiores, tínhamos que recorrer, com frequência, à imaginação, porque não estavam disponíveis os avançados meios tecnológicos que actualmente – e ainda bem – existem.

Na RTP, a locução e a apresentação de programas foram os trabalhos de início, mas acabei por fazer de tudo um pouco, o que me proporcionou, como facilmente se compreende, uma experiência de grande riqueza e utilidade para os tempos posteriores.

Dirigiu a “Voz de Lisboa”, um canal da Rádio Renascença para a região da capital. Que balanço faz do projecto?

Não correu bem. Foi uma iniciativa completamente frustrante, uma má experiência e que me deixou péssimas recordações. O projecto não tinha bases sólidas para ser bem sucedido, como nunca foi. Aliás, a prova disto é que mesmo hoje não se consegue assumir como um canal de referência ou significativamente importante no panorama radiofónico português.

Qual é a sua apreciação acerca do tipo de rádio que se faz actualmente no nosso país?

Não sou um grande ouvinte nos tempos que correm. Até porque me encontro bastante mais ligado ao mundo da Televisão que me marcou mais. Todavia, pelo conhecimento que tenho, concluo que a Rádio não está muito bem. As emissões possuem pouco interesse e faltam opções. As estações não divergem, no essencial, das suas programações e não se sai de certos registos, nomeadamente de música direccionada para os jovens. É tudo uma questão de bom senso, de se proporem produtos diferentes, emissões diversificadas que respondam a vários gostos dos ouvintes.

Há excepções a esta tendência geral, mas não estou optimista em relação aos tempos mais próximos da Rádio portuguesa.

É um pouco o mesmo que se passa noutras áreas, por exemplo, no Teatro. No nosso país, só se produz o de tipo experimental e se eu quiser assistir a um Drama ou a uma Farsa, não tenho oportunidade, porque os grupos não se dedicam a estas áreas teatrais.

Como avalia os novos profissionais que vão chegando às estações de rádio e televisão?

Há pessoas de grande valor e outras que nem tanto. Qualquer profissional tem de estar preparado para resolver as situações que se lhe apresentam no dia-a-dia. É verdade que, actualmente, há muita gente a trabalhar nestes meios. Mas, estou fortemente convicto de que da grande quantidade, há-de se revelar a qualidade. Os melhores ficarão, num processo natural de selecção, tal como, aliás, sucede em relação a outros domínios de actividade.

Quem chega à Rádio e à Televisão tem de ser humilde e reconhecer que tem muito para aprender, num percurso diário de aquisição de conhecimentos.

Que explicação encontra para o sucesso do programa «Ponto de Encontro»?

É um programa que se identifica completamente com o povo português. Está intrinsecamente relacionado com um conjunto de condições sociais e económicas que o país viveu na sua História.

Portugal ficou marcado pela emigração de cidadãos seus para as mais variadas partes do mundo, sobretudo os PALOP’s no período da colonização. Muita gente procurou fora do país escapar à pobreza que cá existia, em busca da obtenção de melhores condições de vida.

Mesmo dentro de Portugal, houve vagas sucessivas de imigração, com a deslocação de muitas pessoas das suas regiões de origem para os grandes centros urbanos, onde a vida era menos difícil que nas pequenas aldeias ou vilas do interior.

Estas situações levou a uma enorme quantidade de desencontros entre amigos pais, filhos, irmãos e outros familiares. O programa «Ponto de Encontro» permitiu que pessoas que nada sabiam umas das outras há anos e anos tivessem a felicidade de se reverem.

É gratificante quando a equipa conseguia resolver os casos. Claro que é um trabalho muito difícil seleccionar as situações de entre as milhares que a produção do programa recebia. E há sempre aqueles casos que por este ou aquele motivo nos sensibiliza e comove mais. Mas, da minha parte, tentei gerir as emoções da forma mais correcta possível, do mesmo modo como sempre ao longo da minha carreira tive que o fazer para conseguir que o trabalho final resultasse. Qualquer pessoa que trabalhe em Rádio ou Televisão tem de adoptar tal atitude; é uma questão inerente ao profissionalismo que se exige.

No «Ponto de Encontro», antes da gravação do programa, fiquei a conhecer as histórias de vida da emissão. Isso era fundamental. Em relação às pessoas participantes, que procuravam outras através do programa, falava com elas um pouco antes do começo da respectiva emissão.

Sente que pertence a uma geração que marcou e marca a Rádio e a Televisão do país?

Sem dúvida que sim. Os profissionais das décadas de 60 e de 70 constituem uma referência fundamental nesses meios. Singraram pela qualidade do seu trabalho, pelo esforço e enorme dedicação e amor que sempre colocaram naquilo que foram fazendo.

Sinto-me privilegiado por fazer parte de uma geração de profissionais que teve que trabalhar em condições muitas vezes difíceis sem as ajudas tecnológicas que hoje qualquer jovem tem à sua disposição quando entra nestas lides.

Eu e outros do meu tempo continuam actualmente a dar o melhor de si próprios, contribuindo para que as emissões possam ter um certo nível de qualidade, o que foi e é uma das nossas preocupações principais.

Como avalia o tipo de Televisão que se produz actualmente?

Já esteve melhor. Vive um momento que é o ideal para quem quer fazer “má língua” a dizer mal da TV. Os “reality shows” estão a dominar, mas creio que é uma fase passageira. Não é caso para dramatismos exagerados e injustificados. O que se passa em Portugal, a este nível, não é nada de diferente do que está a suceder nos outros países. Mas, a evolução não pára e estou convicto de que a Televisão voltará a apostar fortemente noutros géneros de produtos.

Não sou elitista. Defendo até que as estações devem transmitir programas o mais diversificados possíveis para responderem aos gostos múltiplos dos telespectadores. Mas, advogo que é preciso que todos esses programas, por muito diferentes que possam ser entre si, possuam um determinado nível de qualidade. Estou algo desencantado com a Televisão que se faz hoje no nosso país. Mas, deixe-me dizer que não penso ser função da TV educar as pessoas; tem é de dar-lhes o que elas desejam, sem resvalar para o mau gosto e desrespeito pelo público. A Televisão tem de apresentar um pouco de tudo; ela possui um carácter, por natureza, generalista.

No caso concreto da informação da TV, também já foi melhor, mas, mesmo assim, continua a ser uma referência fundamental nas emissões que não pode deixar de ser valorizada, havendo excelentes profissionais a trabalharem no meio.

Estas são as minhas apreciações genéricas, sem pretender, de forma alguma, desempenhar qualquer função que caberá a um Director de Programas de qualquer estação.

Quais são os seus projectos para o futuro próximo?

Neste momento, não tenho propriamente nenhum projecto em perspectiva que pretenda propor à SIC. Aguardo que a estação me apresente ideias para novos trabalhos que possa abraçar, como fiz em relação aos anteriores.

Jorge Azevedo

 

 

 

DOUTORAMENTO EM MIGUEL TORGA

A doutrina de um anarquista

Miguel Torga amava a natureza e foi através dela, dos modelos de infância, do amor à vida, da luta pela liberdade e sobretudo pela poesia que procurou a sua identidade, numa luta contra o tempo e na afronta à morte. Esta é uma conclusão a tirar da dissertação de doutoramento de Maria de Lurdes Barata, professora da ESE de Castelo Branco, que acaba de defender a sua tese, a qual foi distinguida com a nota máxima: aprovada com distinção e louvor por unanimidade.

Sob o título «Miguel Torga - Espaço de um eu em polifonia de vozes», a tese foi discutida durante pouco mais de duas horas, a 11 de Junho, na Reitoria da Universidade de Lisboa, com um júri presidido pelo vice-reitor da instituição, Marques de Almeida, sendo arguentes Arnaldo Saraiva (Universidade do Porto), Fernando Martinho (Universidade de Lisboa e orientador da tese), Paula Morão e Margarida Braga Neves, ambas da Universidade de Lisboa, e Carlos Mendes de Sousa, da Universidade do Minho.

Em relação ao trabalho, a nova professora doutora dividiu-o em duas partes. Na primeira analisa o EU íntimo enquanto “homem de escrita” efectivado e dado ao leitor ao longo de um “processo poético” que junta o sofrimento ao silêncio e à criação de uma teia de palavras, a qual não permite tudo, mas ajuda o poeta a conhecer-se a si e a conhecer os outros. É pela poesia que comunica, mesmo além da sua existência física.

De acordo com a tese, a que tivemos acesso, consciente da sua irreversível finitude, Torga encara “o tempo e a morte, fatalmente ligados”, mas fá-lo associando-os a uma permanente inquietação humana, “porque o homem é ser-para-a-morte exactamente porque é ser de tempo”. Revoltado com o inexorável fluir do tempo, com o caminho para o fim, que não lhe permite fazer toda “a descoberta e aprendizagem da vida”, é peremptório: «O destino destina / Mas o resto é comigo», assumido assim a liberdade do homem nos caminhos da vida.

MORTE. Enquanto poeta, luta pela liberdade, para si e para “os irmãos-homens”, enamora-se da vida, ergue-se de novo após cada revés e “afronta a morte - «Morrer não tem qualquer importância, desde que seja a esbracejar»”. Ainda na primeira parte da dissertação, na qual Maria de Lurdes Gouveia Barata demonstra que o poeta se descobre e ganha domínio sobre o seu ser através da poesia e da escrita, as quais sacraliza. “Um eu, depoente de vida, extravasa-se na escrita, tornando-se o Diário uma parábola dos dias e um Livro de Horas - são fragmentos dos dias e fragmentos do eu”.

A autora demonstra ainda que, se é pela poesia que Torga se procura conhecer, a verdade é que nunca o chega a fazer na plenitude, uma vez que o EU é um «nó cego de contradições». “O mito do labirinto e a procura de um centro mais não conseguem do que chegar ao eu dividido”, a um “drama do eu, que se traduz numa guerra civil” traduzida num verso de um poema: «O Inferno sou eu», ou na frase «A paz possível é não ter nenhuma». É com este eu íntimo que se inicia a segunda parte.

Conclui então que Torga desenha o seu auto-retrato a partir de um conjunto de fragmentos que também vai buscar aos modelos que conheceu na infância, na terra natal, em São Martinho de Anta, o lugar de onde “parte para a aprendizagem de Portugal”, para o mundo, em busca do “único paraíso certo”. Para isso, encara o seu corpo como “corpo da Natureza”, que também sacraliza, incluindo nela o mar, que Torga denomina de «grande túmulo para um poeta». E é a partir dessa natureza que visa construir o puzzle da sua identidade, que se agrega através da poesia e com amor. “Todo esse amor se vaza na escrita, dizendo que lhe sai «a ternura pelo bico da pena»”.

Emerge assim o homem “que vai delineando um retrato ao longo dos dias de viver e de caneta em punho. E deixa as vozes: a judicativa, a da revolta do rebelde, a do ser humano que sofre, a do poeta que procura a palavra reveladora, a da dúvida de si, a do sonho, a da inquietação, a do desassossego, a do homem que ama e que tem fome de amor”. E se não conhece a sua alma como sendo una, mas qual conjunto de fragmentos pertencentes às diferentes dimensões do EU, no fim Torga terá a certeza que a sua angústia, essa sim, é um todo inteiro e permanente que procura desvendar o enigma da verdadeira identidade.

 


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