Director: João Ruivo    Publicação Mensal    Ano VI    Nº65    Julho 2003

Cultura

GENTE & LIVROS

Mário de Carvalho

«A segunda parte queria eu começá-la logo de rijo, e em festa. Tinha ensejado para este lugar uma vasta elipse, de proporções conformes aos estilos consabidos da Retórica e da Geometria. Mas, antes, arrebatou-me um escrúpulo cadastral de apontar, em sinopse, o que ocorreu no interim, com prejuízo da tal figura de estilo, que fica a dever à perfeição. Teria a vida facilitada se os acontecimentos houvessem evolucionado de molde a eu poder dizer como Camilo «Decorreram dez meses sem sucesso digno de menção...», deixando o tempo, entretanto, a trabalhar para o romancista.

Mas o que aconteceu, aconteceu e não lhe falta a sua pertinência. Conta-se em poucas penadas. A ex-mulher de Jorge Matos consorciou-se com um ortopedista famoso que também era reputado devorador de congressos e colaborador inveterado de revistas médicas. A filha Eufémia, informada de que o casamento decorrera pelo Registo Civil, enviou cartas, ora inflamadas ora sentidas, lá das Áfricas e tomou, decididamente - não se sabe ainda se decisivamente - o partido do pai. (...)

Eduarda Galvão deixou de comparecer na revista Modelar e foi muito ouvida a chasquear da publicação em lugares frequentados. Imprudentemente, o director despediu-a por carta e Eduarda instaurou uma acção junto do foro competente por ausência de justa causa, com perspectiva de uma indemnização não sumptuosa mas agradável. (...)

(...) E Joel Stross? Joel lia as obras escolhidas de Lénine, nas Éditions en Langues Étrangères de Moscou, actualizadas pelo vademeco Ça ira! e tomava notas esmiuçadinhas. Fazia insistentes telefonemas a Jorge, os mais a fingir que era só para conversar, outros de obstinação aberta, naquela vontade de militância.»

In Era Bom que Trocássemos
Umas Ideias sobre o Assunto

Mário Costa Martins de Carvalho nasceu em Lisboa a 25 de Setembro de 1944. Em 1969 licenciou-se em Direito pela Universidade de Lisboa. Ainda estudante filia-se no Partido Comunista e envolve-se nas lutas estudantis de 60. Durante o serviço militar é preso pela PIDE. Parte em 73 para um exílio em França e na Suécia. Regressa a Portugal após a revolução de Abril de 74. Actualmente exerce advocacia em Lisboa na área do Direito do Trabalho que concilia com a actividade literária.

Publicou o primeiro texto em 1980 no volume antológico Mar e o primeiro livro, Contos da Sétima Esfera, em 1981. Segue-se Casos do Beco das Sardinheiras (1981), O Livro Grande de Tebas, Navio e Mariana (1982) - romance histórico-fantástico que ganha o prémio Cidade de Lisboa - A Inaudita Guerra da Avenida Gago Coutinho (1983), Fabulário & Etc. (1984), A Paixão do Conde de Fróis (1986) - Prémio D. Dinis , Quatrocentos Mil Sestércios (1991) - Grande Prémio do Conto APE, Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde (1994) - Grande Prémio do Romance APE , Prémio Pegasus e Prémio Fernando Namora, Era Bom que Trocássemos umas Ideias sobre o Assunto (1995).

Mário de Carvalho escreve também guiões, diálogos e adaptações para televisão. É autor das peças de teatro O Sentido da Epopeia que estreou em Abril de 89 pelo grupo O Bando e A Rapariga de Varsóvia que estreia em Julho de 1991 pela companhia Novo Grupo. Em Outubro de 1986 O Sentido da Epopeia é representada em Paris pelo Théatre du Matin.

Colaborou com as revistas e jornais: Mar, Peste, Eldorado e Ruínas, O Ponto, Diário de Lisboa, O Diário, O Jornal, Arestas, Vértice, Colóquio/Letras, Signo, Diário de Notícias, Público, Expresso, Visão e JL.


Era Bom que Trocássemos Umas Ideias sobre o Assunto. Joel Strosse Neves é um cinquentão bibliotecário, casado e pai de Cláudio - preso por tráfico de droga. Jorge Neves é um professor cinquentão divorciado, pai de Eufémia - missionária em África - aspirante a dramaturgo e militante do Partido Comunista. Joel Strosse e Jorge Neves, antigos colegas de faculdade, encontram-se passados muitos anos. Ambos inventam uma nova vida para os filhos - a estudar no estrangeiro - e reatam uma amizade há muito esquecida. Joel Strosse pretende viver uma vida política que não aconteceu no seu tempo de estudante e para isso precisa da ajuda de Jorge Neves.

Eugénia Sousa
Florinda Baptista

 

 

 

Novidades

EUROPA-AMÉRICA. A Exploração do Sara de Jean-Marc Durou. Voar e atravessar desertos são desde sempre sonhos da humanidade. Este é o livro dos exploradores do Sara. Um livro belíssimo sobre um espaço geográfico de 8 560 000 quilómetros quadrados que só no século XX ficou completamente descoberto. «Não poderíamos , pois, agradecer bastante a Jean-Marc Durou por ter sabido trazer a público uma obra sólida, bem documentada, onde se encontra o essencial e, o que em nada a prejudica, de uma leitura extremamente agradável». - Théodore Monod. Seja pois bem-vindo à imensidão e magia do Sara.

PIAGET. Poderá a Escola Ser Justa e Eficaz? - Da Igualdade das Oportunidades à Igualdade dos Conhecimentos de Marcel Crahay. «O exame detalhado das investigações em educação permite, presentemente, encontrar pistas de acção para tornar a escola mais eficaz e mais justa. Depois de uma reflexão crítica sobre o conceito de equidade em matéria de educação, a presente obra fixa-se num largo balanço das investigações sociológicas e pedagógicas a fim de delimitar as aquisições (importantes) e de identificar os campos de incerteza e ou de ignorância».

ASA. O (Des)Caminho para Santiago de Cees Nooteboom. O escritor leva-nos por uma viagem a Espanha cujo destino é Santiago de Compostela. Até lá muitos são os desvios Aragão, Granada, Soria, a ilha de la Gomera. A sua escrita também divaga entre reflexões históricas, literárias e políticas numa Espanha amada por um holandês. Cees Nooteboom nasceu em Haia em 1933, nome importante das letras contemporâneas foi várias vezes proposto para o Prémio Nobel.

GRADIVA. A Balada da Máquina de Lavar de Lynn Johnston. Integrado na colecção “Para o que Der e Vier”, A Balada da Máquina de Lavar é um dos grandes êxitos do cartoon norte-americano, e será publicado integralmente por ordem de aparecimento dos álbuns originais.

 

 

 

BOCAS DO GALINHEIRO

Pigmalião ou o valor da palavra

A lenda de Pigmalião, um escultor de Chipre que se apaixonou por uma estátua de marfim em que esculpiu uma bela figura feminina, à qual Afrodite deu vida, foi recriada pelo dramaturgo e escritor George Bernard Shaw que escreveu um “romance em 5 actos” transportando a acção para Covent-Garden, bairro pobre de Londres, no ano de 1912.Tão fascinante história, do criador que se apaixona perdidamente pela sua criação, não passou despercebida ao cinema, a começar por Méliès que em 1895 realiza “Pigmalion et Galattée”.

Em 1930 Bernard Shaw deixou claro que não era grande adepto da adaptação das suas obras ao cinema mudo. Quando o sonoro chegou a situação modificou-se, pois, como disse “tornou-se possível não apenas mostrar no écran as minhas peças mas falá-las”. Não admira assim que, depois de uma primeira versão da sua peça “Pigmalião”, produzida na Holanda em 1921, na década de 30 a mesma tenha conhecido três versões. Em 1935 do cineasta alemão Erich Engel, com o célebre Gustav Gruendgens como professor Higgins e no ano seguinte na Holanda, outro germânico, Ludwig Berger, filma a sua versão, assinalada como importante por Sadoul na sua discutida “História do Cinema”.

Porém a mais célebre adaptação foi a produzida pelo húngaro Gabriel Pascal no ano de 1938. Com a intervenção de Bernard Shaw no “script”, com cenas e diálogos adicionais, o filme teve uma dupla realização de Anthony Asquith e Leslie Howard que acumulou com a interpretação, exemplar, do professor Higgins. Com esta obra Asquith sai do anonimato e atinge a glória. Mas além dos citados convém não esquecer que na fotografia estava Harry Stradling, que 21 anos depois repete com “My Fair Lady”, a música é de Arthur Honneger e a montagem de David Lean. Uma ficha técnica de peso, a que se deve acrescentar Dame Wendy Hiller, no papel de Elisa Doolittle, uma actriz que preferiu o teatro ao cinema.

Este “Pigmalião” é visto como “um perfeito modelo de adaptação cinematográfica, quer pela fidelidade ao texto original, quer pelo aproveitamento na montagem apriorística dos melhores efeitos literários e dramáticos da obra de Shaw. É verdade que não passava de teatro filmado, mas revelava tanta garra na condução de actores que se teve a impressão que o cinema inglês chegava à maturidade” (Breve História do Cinema). O filme, cujo êxito no Festival de Veneza foi enorme, é a obra mestra de Asquit e, no dizer de Sadoul, abriu caminho às futuras adaptações de obras de Shakespeare por Laurence Olivier.

As comemorações do centenário do nascimento de Bernard Shaw foram motivo para que Jay Larner e Frederick Lowe realizarem uma das mais memoráveis comédias musicais: “My Fair Lady”, adaptação de “Pigmalião”, em palco no Mark Hellinger Thether, oito vezes por semana entre 1956 e 1962.

Em 1964 a Warner Brothers levaria a efeito o filme (na foto) baseado nesta opereta graciosa sobre um professor de fonética que transforma uma florista comum, que se expressa no calão londrino (cockney), numa delicada e bem falante dama da alta sociedade. Mantendo Rex Harrison (o admirável Higgins no palco), mas preterindo a então descoberta Julie Andrews por Audrey Hepburn, no auge da sua carreira, para uma frágil Elisa Doolittle. Warner fez uma escolha acertada. Hepburn foi brilhante, mas dobrada nas canções por Mari Nixo, uma vez que não sabia cantar. Os figurinos de Cecil Benton, de supremo efeito em palco foram recriados e acrescidos, o que, aliado a uma sensível coreografia e à música de Lowe, agradável ao ouvido e dirigida no filme por André Previn, transformaram este sucesso de Shaw num êxito permanente, graças à hábil batuta do veterano cineasta George Cukor, para quem o teatro e o cinema não tinham segredos e que orientou com notável bom gosto este grande espectáculo.

A peça de Shaw conheceu entretanto outras adaptações para cinema e televisão, de que destacamos a produção brasileira realizada em 1970 por Régis Cardoso, haverá quem se lembre da sua telenovela “O Bem Amado”, “Pigmalião 70”, transportando-a então para o ambiente do Brasil.

Em Portugal o teatro não ficou indiferente a Bernard Shaw nem ao seu “Pigmalião”. Nos idos anos 40 a peça foi representada no Teatro da Trindade pelos Comediantes de Lisboa, contando no elenco com a “nossa” Maria Lalande, Assis Pacheco, António Silva e João Villaret, entre outros.

Em cena no Politeama está a produção de Filipe La Féria “Minha Linda Senhora”, uma versão portuguesa de “My Fair Lady”, de Lerner/Lowe. Um assinalável êxito, que conta com as interpretações de Anabela, Carlos Quintas, Lurdes Norberto e Miguel Dias, para referir apenas estes. Uma produção que, tal como a original, vale pelos belíssimos e inesquecíveis temas musicais.

De “Pigmaliões” sabe o cinema. De muitos. A começar por Cukor e Katherine Hepburn. Não casou com ela, sabe-se. Mas fez dela uma soberba actriz. Basta lembrar que debaixo da sua direcção a actriz participou em oito filmes. E, para acabar, que seria de Marlene Dietrich sem o seu “Pigmalião”, Joseph Von Stenberg?

Luís Dinis da Rosa
com Joaquim Cabeças

 


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