Director: João Ruivo    Publicação Mensal    Ano VI    Nº66    Agosto 2003

Entrevista

VERÍSSIMO SERRÃO ANALISA ENSINO DA HISTÓRIA

Globalização, estratégia neocolonialista

Veríssimo Serrão condena a «Torre de Babel» em construção na União Europeia. Em entrevista exclusiva ao «Ensino Magazine», o prestigiado historiador avisa para os perigos de edificação de um super-Estado no continente que englobaria uma diversidade de culturas, muito diferentes entre si.

Veríssimo Serrão critica também a globalização por obedecer a uma estratégia neocolonialista.

Como avalia o ensino da História que é ministrado em Portugal aos níveis do Básico e Secundário?

Pelo que me é dado saber, os actuais programas não têm em conta que o ensino da História contribui para a formação integral dos jovens que, na linha contínua do tempo, serão os homens do amanhã. Se uma boa formação obriga a uma actualização de conhecimentos nos diversos ramos do saber, nunca ela pode dispensar a consciência do passado, sem a qual não se entende o futuro em gestação.

Num mundo marcado pela vertigem do efémero, que papel está reservado ao conhecimento histórico?

Não poderá compreender a evolução do mundo quem não tiver a noção exacta das suas raízes temporais, que só a História pode comprovar. Na “vertigem do efémero” de cada dia, o conhecimento histórico representa a permanência dos homens e das coisas em cada geração.

Qual a utilidade desse conhecimento para a generalidade dos cidadãos?

Quando se fala em cidadania, deve atender-se que somos filhos, como portugueses, da língua, do sentimento e da cultura que modelaram, desde a infância, a nossa maneira de ser. E não se caia no ridículo de ver no patriotismo um conceito inadequado ao tempo da globalização, porque as nações mais evoluídas, como a Inglaterra, a França e a Alemanha, não admitem que se ponha em causa esse sentimento na formação das suas camadas mais jovens.

Como encara os receios de invasão económica de Portugal por parte de Espanha. São reminiscências das guerras passadas entre os dois países?

Sempre defendi, em relação à Espanha, a fórmula “dando-nos as mãos por cima da fronteira, mas cada povo em sua casa”. A verdade é que o país vizinho possui uma riqueza natural e uma força aglutinante que lhe conferem a supremacia de meios no conjunto ibérico. Não se esqueça que a Espanha é a 7ª potência industrial do mundo e que o seu nível de vida aumenta na razão inversa do vizinho que continua na cauda da Europa. Daí não poder estranhar-se o fenómeno da extroversão da sua riqueza e bem estar que mostram, no dia-a-dia a precaridade das nossas estruturas, já não digo de ordem material, mas quanto ao engenho mental.

O problema de Olivença continua a ser um “espinho” entre Portugal e Espanha. O nosso país não reconhece a soberania espanhola sobre aquele território. A História dá-nos razão?

Como já escrevi na «História de Portugal», não se trata apenas da vila de Olivença, mas da riquíssima várzea ao seu redor, que a Espanha guardou depois da chamada “guerra das laranjas”, em 1801. Trata-se de um esbulho nos campos político e diplomático que foi sempre denunciado pela História, mais do que pelos regimes portugueses, quaisquer que eles tenham sido, desejosos de preservar o entendimento luso-espanhol. Temos, no entanto, de ser realistas, porque dois séculos passaram e não vejo a população de Olivença, por maior carinho que tenha pelas raízes portuguesas, a querer separar-se politicamente de Espanha, após um vínculo de oito a nove gerações. Acresce que qualquer tipo de referendo, nestas condições, seria altamente desvantajoso para a pretensão histórica do nosso país.

Um bom patriota tem necessariamente de saber muito da História do seu país?

Deixei já antes uma parte da resposta a essa questão. Não creio que me considerem passadista, se relembro a lição sempre actual de Almeida Garrett, para quem “nenhuma educação pode ser boa se não for eminentemente nacional”. Não se trata de ignorar o progresso material que varre o mundo e que é fonte de um mais amplo conhecimento. Trata-se, sim, de ajudar a robustecer o pensamento e o carácter dos que encarnam a realidade portuguesa no mundo de hoje e que não podem ignorar a génese mental do que fomos e do que somos. Embora alguns bem pensantes ridicularizem o conceito, não me parece que seja crime amar a terra e as gentes que fizeram de Portugal uma grande nação. Só o culto da História permite entender essa aliança que emerge do nosso corpo e da nossa alma.

Em que medida a História reflectida, ponderada e científica não foi ou não está a ser substituída pela História do dia-a-dia relatada pelos media?

Não me repugna que ao lado da História a que chama científica, assente nos postulados do rigor e da seriedade, exista uma História de vertente divulgadora. Ensina-nos a vida que as coisas não brotam sem amor por elas, sem uma carga de afecto que nos põe em contacto directo com as realidades do pretérito. Uma das grandes virtudes do Professor José Hermano Saraiva, aliás um transmissor de ideias como não conheço outros, foi a de ter feito os portugueses amar a História nacional, nos seus encantos e mistérios. Agora, esse louvável pendor não os faz esquecer a necessidade de um saber histórico objectivo e documentado, que permita ao historiador aproximar-se de uma verdade acerca do passado e que sabe, de antemão, ser relativa. Nunca, como no nosso tempo, se tornou tão urgente trazer as lições do passado à consciência do presente!

Concorda com a ideia de que os portugueses vivem demasiado dos seus feitos passados (como os Descobrimentos e o Império colonial) em vez de perspectivarem mais seriamente o futuro? Quais os motivos que o poderão explicar?

Perspectivar o futuro, sem os pés assentes na terra e na realidade do tempo concreto, não é História mas futurologia. Tal circunstância não me impede de reconhecer que o presente “está grávido do futuro”, mas sem que tenhamos a certeza prévia da linha evolutiva dos acontecimentos.

Voltando ao eixo da pergunta, a História de Portugal constitui uma linha temporal contínua de quase nove séculos, pelo que não a podemos fraccionar em períodos, como o dos Descobrimentos ou da nossa fixação no além-mar com o fim expresso de a diminuir ou perverter. Tal foi um dos pecados do materialismo histórico, escola de que os últimos representantes capricham nos aspectos negativos de um processo em que Portugal teve o mérito de abrir a era oceânica. Em vez de apenas trazerem ao de cima os mecanismos económicos e sociais, melhor fariam em enaltecer as motivações de ordem espiritual, com a edificação de igrejas e hospitais, de colégios e boticas, na arte de bem fazer e de bem estar que o cristianismo semeou no coração dos homens.

As fronteiras foram derrubadas… a globalização tornou-nos vizinhos de uma “aldeia global”. A História tem, por isso, de apostar mais fortemente na inter-relação entre os Estados e nos movimentos globais?

Num mundo constituído por tantas diferenças de etnia, de riqueza e de cultura, a chamada globalização tornou-se o meio aliciante de as grandes potências se apresentarem como protectoras das mais débeis quanto aos elementares recursos da vida. Não creio que seja a forma eficaz de criar estruturas conducentes a uma elevação dos padrões de vida dos povos mais carecidos, sendo mesmo levados a crer que se trata de uma estratégia de vertente neocolonialista. Se sou, por natureza, favorável a tudo o que contribua para climas de paz ou de cooperação entre os Estados, entendo que nenhum destes (e falo dos mais desenvolvidos) deve abdicar da sua identidade nacional sob pena de esta se liquefazer na Torre de Babel em projecto.

Como perspectiva a hipótese da Europa se tornar federal. Em quê a soberania de Portugal poderá estar comprometida?

Acredito na “ideia” da Europa que nasceu à sombra da Idade Média, numa tradição latina e cristã. Contudo, vejo com apreensão o somatório de interesses que pretende reunir num super-Estado nações de cultura tão distinta como as da Europa ocidental, danubiana ou eslava. Todo o esquema da União Europeia obedece à supremacia financeira da Alemanha e à recuperação da França como entidade cultural. Qual vai ser o futuro de Portugal? Talvez agora se reconheça o crime político que foi a concessão de independências apressadas, quando estava em curso o projecto dos “novos brasis” que haveriam fazer, na abertura do século XX, dos povos de língua portuguesa uma comunidade atlântica de valor incalculável. O nosso país perdeu, assim, uma posição geo-estratégica única, para não dizer invejável, pelo que nos vemos hoje forçados a embarcar no último barco da esquadra europeia.

Jorge Azevedo

 


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