Director: João Ruivo    Publicação Mensal    Ano V    Nº52    Junho 2002

Opinião

CONTO

Nô pintcha

A missão obrigava-nos a vestir de uma só cor e a ter um só pensamento: exigir para cumprir. Ou seja, deveríamos não só cumprir a missão como exigir que os outros procedessem do mesmo modo. Realmente, este nosso objectivo só seria conhecido no regresso. Nenhum estandarte ou crachá daria conta do desígnio proposto, tanto mais que o nosso destino era Timor e não passamos da ilha da Praia, em Cabo Verde. Melhor para nós. Seria esta uma guerra com ar condicionado: um destino de férias, apesar do batuco, mornas e coladêras não nos dizerem, à chegada, muito mais que folclore, a compensar quem passou a adolescência com pesadelos de balas e estilhaços.

À semelhança do provérbio crioulo: cima grilo baixo pedra: calca protcha, frouxa boa, com o qual, milicianos, haveríamos de conviver, tínhamos a alma entregue ao criador. Quer dizer, estando nós na mó de baixo, sujeitam-nos como o grilo debaixo da pedra: se calcassem seríamos esmagados, se descuidassem voaríamos.

O que menos precisámos eram aquelas botas todo-o-terreno, o camuflado e a inevitável G3, estimada companhia para coisa nenhuma, até que as balas lhe apodrecessem na culatra.

A primeira impressão foi de desalento. Iniciei um poema: São cisnes de bronze e sal/ à beira mãe. A terra avermelhava de tanta sede. Não respirava. Não respirávamos nós. Engolíamos um pó finíssimo trazido pela aragem e era tudo em finais do mês de Maio.

Continuei o poema deixai-os navegar/ ventos/ chuvas. Putos com a nudez disfarçada por farrapos corriam para a tropa em busca de uma moeda, dos restos da merenda da viagem, como no jogo da apanhada. Concluí o poema: São filhos de África/ Ilhas de ternura.

Para já tínhamos o batuco. O ritmo imprimido pelo grogue e a vertigem provocada pelo bambolear das Kadêras das mininas. Água de chuva é que não.

Só ao fim da tarde parecia viver gente nas Achadas. Enchiam-se de correrias de crianças, de intermináveis ladainhas em criolo, do bater intermitente do pilão, esmagando o milho, e nuvens de poeira. Sempre o pó. O pó no ar, nas casas, na roupa e na garganta. Mas nesta seria limpo, não tardaria, por uma catchupa pobre, feita com muito engenho e pouca carne. Dos restos se encarregariam os corvos e as cabras, se houvesse restos.

Muitas ilhas têm nomes de santos. Sobram para outras nomes austeros. Maio, Brava, Fogo, Boavista e sal. As vilas e cidades seguem-lhes o rasto. O Tarrafal, exemplo de dor e de vergonha, era o lugar de Chão Bom.

Aos poucos fomos mudando a indumentária para coisas mais leves e amistosas, soletrando alguns vocábulos em crioulo, apertando as mãos (e quanto tempo demora um cumprimento...) que a amizade foi trazendo ao nosso encontro.

As novidades, ou o pouco pano que delas sobra, chegam de barco a S. Vicente, de avião a S. Tiago, quase nunca à Alfândega dos Espargos, na ilha do Sal, e, quando já não são novidade alguma, às restantes ilhas. - Mantenha. - Diz-se, nas boas vindas, com a morabeza de sempre.

Os aparelhos de ondas curtas são obsoletos. Não há notícias que prestem.

Outras ondas são límpidas. São azuis e verdes e espraiam-se devagarinho, beijando cada grão de areia por onde passam. À tarde o mar é azul e negro, mas o fundo é cristalino, apesar dos traços vermelhos que o sol desenha até onde se esconde.

Nhô Lima deu à costa da Praia com o bote carregado de peixe sem nome e algumas lagostas, que as mulheres se encarregaram de recolher e dar melhor destino ao que foi vendido logo ali.

- Levem p‘ra Santa Catarina, aí os Tugas compram tudo. - Aconselhou Nhô Lima.

E voltou ao mar para aproveitar a generosidade das águas e a feição dos ventos.

O mar é o que mais há. Depois da seca, depois do vento, depois do pó, depois da terra vermelha e dos frutos minguados. Depois de tudo há o mar, O Mar de Pasárgada, o mar de S. Tomé, o mar de partir e de chegar, o mar Atlântico com o mundo do outro lado.

A 30 de Dezembro de 1974 choveu na Praia. Provavelmente em toda a ilha de S. Tiago, em todas com nome de santo e até nas restantes, com nomes austeros.
5 de Julho de 1975: de novo o Sol, agora em sentido figurado.
Já não era sem tempo.

João de Sousa Teixeira

 


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