CONTO
Color by technicolor
Carlos Manuel prefere ser chamado de Isa,
Isadora ou Isolda. Desconhece-se a obsessão pelo “i” inicial. Sabe-se
apenas que se trata duma opção sua de toda a vida. Não desdenharia o nome
de Eva, como mais tarde se saberá, já sem remédio.
O seu passatempo de eleição é escrever cartas apócrifas. Hollywood é o seu
altar de mitos e deusas. Adora sentir-se na pele de outras pessoas,
escolhidas no mundo do cinema e da ficção. Em parte porque se sente mal na
sua, mas sobretudo pelo fascínio que o invade quando interpreta o papel de
gente em quem pressente mistério, uma certa alquimia.
A todas as missivas junta uma pequena fita de seda, variando entre o
lilás, o azul, o amarelo e o vermelho.
A última carta dirigiu-a a Bogart, levava uma fita azul cortada em forma
de dois corações unidos. Era assinada por Lauren:
Adorado Bogie, ainda hoje me custa aceitar que não estás. Que faço dos
meus lábios sem os teus ardentes beijos? Que faço do meu corpo sem os teus
abraços? A tua voz quente, que escuto ainda a cada momento, é uma brisa
suave no meu peito a acariciar as saudades que ele guarda de ti, adorado
Bogie.
Embora esteja já assinada, a carta parece ter ficado no início. Qualquer
contratempo o terá levado a interromper a declaração póstuma de amor de
Lauren Bacall.
Provavelmente aguarda um momento de maior inspiração.
Carlos não aceita desde muito novo o corpo de homem que Deus lhe deu. Acha
mesmo ridículo o seu apêndice masculino. Digo apêndice e não outro nome
qualquer, unicamente por respeito por quem não conseguiu até hoje
encontrar o substantivo adequado para designar a aberração que a natureza
lhe fez aparecer entre as pernas.
Não há muito tempo, ia a meio de uma carta de Marilyn Monroe para o
presidente Kennedy, desatou num pranto que parecia não ter fim. Veio-lhe à
tona uma infinidade de memórias, de relíquias guardadas e, porventura, no
sótão do esquecimento.
Recordou a Mulher De Duas Caras, de Cukor, com Greta Garbo; Elizabeth
Taylor no papel de Cleópatra, renegando-a em seguida pelos beijos e a
entrega da actriz a Montgomery Cliff, em Lugar Ao Sol; Sarah Bernhardt,
interpretando A Dama das Camélias. Foram muitos os filmes que passaram no
filme que lhe passou em instantes.
Uma mistura de sentimentos percorreu-lhe o corpo frágil. Estava ali e em
lado nenhum. Os objectos e as sombras confundiam-se. Muitas perguntas e
dúvidas o assaltaram num só segundo.
O primeiro impulso foi de renúncia de si. Ainda assim não era esse o
drástico sentido das suas inquietações. A melhor ideia que lhe passou foi
cortar o pénis. Foi isso que fez. Corto-o pela raiz e atirou-o pela janela
com desespero e nojo.
Por sorte, pouco tempo depois, uma vizinha deu com ele encharcado de
sangue, mas sem se lamentar. Apertava com ambas as mãos onde as dores
eram, com certeza, lancinantes, mas sem um ai, sem uma lágrima. Mordia os
lábios como um louco para aliviar a dor e ter a garantia de que da sua
boca não sairia um só pedido de socorro.
- Acudam, que o Carlos matou-se!
Pelo espectáculo moribundo de Carlos Manuel, pelo cenário de sangue
correndo-lhe pernas abaixo, coalhando, vermelho escuro, por todo o chão da
sala, era para a providencial vizinha a hipótese mais provável.
Mas não. Carlos estava vivo. Gravemente ferido, mas vivo.
Em pouco mais de um quarto de hora foi transportado de ambulância para os
Hospitais da Universidade de Coimbra, onde o diagnóstico não poderia ser
outro: amputação do órgão sexual por meio de corte com lâmina.
Ao entrar no bloco, Carlos balbuciava qualquer coisa que a urgência e o
burburinho da corrida dos médicos e auxiliares não deixavam entender.
Atento, o cirurgião, encostou o ouvido à boca do doente e conseguiu
perceber a ladainha:
- O meu nome é Eva, eu estou bem, o meu nome é Eva.
Rezava Carlos Manuel com a força que ainda lhe restava. O médico
respondeu-lhe também ao ouvido:
- Fique descansado, vai tudo correr bem.
Disse para o tranquilizar, ainda longe de tudo correr realmente bem.
Carlos tinha perdido muito sangue e delirava. Foi o que o médico pensou.
- O resto do pénis?
Pediu o cirurgião. Todos fizeram mexer os olhos por cima do pano que lhes
cobria a boca e o nariz, e a resposta foi um encolher de ombros colectivo.
- Vá imediatamente ver se os bombeiros ainda lá estão em baixo.
Gritou o chefe de equipa para uma das auxiliares.
Alguns instantes depois apareceu a enfermeira, que deitava os bofes pela
boca, dizendo:
- Estão aqui os bombeiros, Senhor Doutor.
- Do mal o menos.
Sossegou o cirurgião e, virando-se para os dois atónitos soldados da paz,
ordenou:
- Tragam-me imediatamente o pénis do homem, c‘os diabos! Como puderam
esquecer-se do essencial, caramba?!
A ambulância voltou à estrada, trinta quilómetros para cada lado, com a
sirene a fazer parar os outros veículos e a estremecer os transeuntes,
surpreendidos por assistirem a tal aparato, não em direcção ao hospital,
como habitualmente acontece, mas a sair dele.
Os bombeiros viraram de pernas para o ar a casa de Carlos Manuel, mas foi
no jardim que encontraram o pedaço de carne que afanosamente procuravam.
Suspiraram de alívio, enrolaram-no num penso de gaze e colocaram-no na
maca. A toda a brida de novo a caminho dos HUC.
Pelo caminho, já mais tranquilos, com a ajuda da sirene que lhes garantia
todas as prioridades, não deixaram de se entreolhar, sorrindo, pensando no
insólito passageiro que transportavam com tal urgência.
Chegaram a tempo. A equipa de operação não se tinha desmobilizado e tudo
estava a postos para a minuciosa cirurgia.
Quatro horas no bloco foi o bastante para levar de vencida esta acidentada
tarefa.
- Correu tudo às mil maravilhas, como lhe prometi.
Avançou o médico, logo que Carlos Manuel deu acordo de si. Levou a mão
direita à dor que sentia entre as pernas e sentiu um inchaço maior do que
esperava.
- Ainda está fresco, vai doer. – advertia o médico com um sorriso – Mas
não tarda, não terá problemas em ir a qualquer urinol… Completou, para
animar o paciente.
- O Senhor Doutor voltou a pôr-me aquilo?
- Claro. Eu não disse que tudo iria correr bem. Então? Prometido é devido.
- Mas eu disse ao doutor que não queria ser mais o Carlos. O meu nome é
Eva. É assim que me sinto.
E deixou correr as lágrimas como uma criança atormentada.
O médico ficou momentaneamente sem fala. Engoliu em seco duas ou três
vezes para encontrar uma resposta que jeito tivesse. Pensou ainda na
aflição quando deu conta do esquecimento dos bombeiros, nas quatro horas
de intenso trabalho, na perícia com que manejou o bisturi, nervo a nervo,
com cuidado humano e total entrega profissional, e nada lhe saiu. Tinha
feito um trabalho inglório.
- Bolas para isto! Disse irritado.
- Diga, Sr. Doutor? Murmurou Carlos Manuel enquanto limpava as lágrimas ao
lençol.
- Nada, nada. Se quer ser Eva, como diz, corte-o outra vez, mas não chore,
porra. Os homens não choram!
João de Sousa Teixeira
|