Director: João Ruivo    Publicação Mensal    Ano V    Nº54    Agosto 2002

Opinião

CRÓNICA

Cães de papel

António Cardoso regressa a casa após mais um dia de canseiras, impressos, artigos e alíneas dos impostos e coimas e contribuintes às voltas com a matéria colectável.
Sobe as escadas em direcção ao terceiro direito. Sabe que ao todo são cinquenta e seis os degraus que ainda tem que amargar, antes de poder sentar-se no sofá e ligar o televisor, até ser avisado quando o jantar estiver servido. É quase sempre assim, salvo os dias em que a moléstia lhe consegue um sono de anjo com um ressonar dos diabos ou a mulher lhe puxa pela língua, sobre o aumento dos preços, os feitos da vizinhança ou demais lana caprina ainda por tosquiar. Aguardamos o embate vespertino.

Por enquanto, vai cheirando o jantar dos vizinhos cujos odores se escapam pelas frinchas das portas. Ao mesmo tempo tenta adivinhar o que será o seu. Não tem grande apetite e a hora também já não ajuda. Petisco aqui, petisco ali, é o resultado que dá. Mas o que há-de fazer? O petisco, o regresso a casa àquela hora e, depois, o jantar, são hábitos antigos para os quais não há remédio, nem vestígios de renúncia. 

Chegado ao seu refúgio, leva a mão ao bolso de onde pende uma grossa correia de prata, que termina num volumoso molhe de chaves. Demasiado tarde. Dina, como trata carinhosamente a sua mulher, Maria Aldina, que já o pressentia desde que dobrou a última esquina a caminho de casa, não teve dúvidas quando ouviu o tilintar das chaves junto à porta. Puxou o trinco e escancarou-lhe a porta com um sorriso.
- Obrigado, Dina.

- Esteva a ver que não vinhas...

- Quantas vezes te disse já que não precisas de esperar por mim? Se te dá a fome come.

- Ai, homem, que modos. Não se pode dizer nada.

Poder pode, o problema é que se gastam durante o dia as palavras amáveis e se acumulam os sapos. Quando Cardoso chega a casa, sente-se suficientemente seguro e não tem receio que as palavras lhe saiam com arestas e firam Maria Aldina.
- Que cheiro horrível!

Acrescentou a mulher, pondo de lado o resto da converso a que à muito tempo está habituada.

- Horrível?! A mim cheira-me a carne assada.

- Isso é o Jantar. Mas eu digo o cheiro que trazes.

António Cardoso mirou-se de alto a baixo, levantou as abas do casaco, cheirou as mãos, os sovacos e, por fim, mirou de costas as solas dos sapatos, concluindo:
- É merda de cão!

Correu ao pé coxinho para a varanda para se livrar da encomenda e, de regresso, passou pelo quarto, trazendo já as alpercatas enfiadas.

- Isto é obra do Bolinhas!

Vociferava para se desculpar da imprudência.

O Bolinhas, coitado, não tinha culpa. É um pequeno rafeiro que deambula lá por casa há mais de dez anos e raramente sai à rua. Por isso a merda não podia ser sua, e era ponto assente quando à proveniência exterior da bosta que untava a solo do sapato de António Cardoso.

- Só a mim acontecem destas coisas!

- Apesar de nunca te dignares levantar o rabo do sofá e fazeres um passeio higiénico com o pobre do animal.

Atirou-lhe Aldina em jeito de queixa.

Cabe-lhe a ela essa tarefa ingrata de levar o cão, quando vai à mercearia. E é porque o deixam lá entrar. É cliente antiga e o Bolinhas não dá muitos cuidados. Mas custa-lhe ouvir certos comentários, como noutro dia o Dr. Pimenta, doutor não sei de quê, que está reformado e mora no primeiro direito, a propósito de limpezas, que a cidade está cheia de merda de cão, porque as pessoas não têm cuidado. É claro que se sentiu visada, embora tivesse fingido não ter ouvido, como já fez tantas vezes e para coisas até mais importantes.

Agora já não sai todos os dias. Primeiro tinha dores nas pernas, o sangue tornou-se preguiçoso com os anos e não circulava como devia, depois apareceram-lhe umas manchas escuras, umas veias mais salientes junto aos tornozelos e na barriga das pernas e isso retirou-lhe a vontade de sair e até de ir à missa. As dores a pagar pelo caminho andado são sacrifício demasiado.

- Sabes que eu não posso e o cão tem necessidade de espairecer...

Acrescentou depois Aldina em tom mais brando e convidativo.

Cardoso é que já tinha voado dali. Voltou à Repartição para, mentalmente, conferir uns verbetes, cujo preenchimento lhe tinha deixado dúvidas.

- Dizias?...

- Que depois de jantar deverias ir passear o Bolinhas.

- Ora, passear o bolinhas, passear o bolinhas, Dina, tu tens cada uma!

Não seria desta. António Cardoso não se conseguia imaginar preso a uma trela com o cão na outra extremidade a levantar a perninha a tudo o que é parede ou pneu de automóvel, dar as boas noites à vizinhança naquela figura e, de regresso a casa, ainda ter que inspeccionar as solas dos sapatos, não vá também o escuro da noite pregar-lhe a partida.

- Não vou. Não consigo. Não quero, pronto!

Ora aí estão três argumentos de peso com que se furta ao passeio.

Dina sabia que António se haveria de baldar. Conhece-o há tantos anos, que na maioria das vezes o questiona só para o ouvir falar. A resposta sabe-a ela de cor e salteado. Quando não havia televisão, ao tempo que isso já lá vai, as conversas soltavam-se, como as cerejas, umas pegavam nas outras. Agora não. Chega a casa já petiscado, às vezes um copito fora da conta, de modo que não se preocupa com a hora do jantar. Senta-se no sofá, liga o televisor e, quase sempre, adormece de boca aberta e o comando sobre o peito. Aldina, entretida com a azáfama do jantar, só dá por ele porque ressona naquela posição, embora negue que tal alguma vez tenha acontecido.

Às oito e meia da manhã, como sempre, António Cardoso sai de casa para mais um dia de burocracia e más falas por conta de outrem. Quando chega à Repartição, já uma fila de gente aguarda atendimento.

- Que raio de mania. Parece que dormem aqui dum dia para o outro.

Vai ele remoendo até se sumir entre estantes de arquivo e reaparecer, às nove em ponto, com cara de quem, afinal, está ali para servir e não para tecer comentários à forma como se comportam os contribuintes ou seja lá quem for.

Assim que o primeiro da fila se aproximou do balcão, aligeirou as comissuras dos lábios de forma enigmática, não dando a entender se se trata dum sorriso de cumprimento ou tique de origem nervosa e dispara:

- Tenha a bondade.

- Necessito de uma informação.

Retorquiu o homem, com ar de mártir aflito.

- Não estou aqui para outra coisa. Faz favor de dizer.

A empatia de António Cardoso não aliviava o desespero do contribuinte, nem tal era sinónimo de que o pensamento do funcionário atencioso estivesse exclusivamente ali. Mas continuemos:

- Estou pelos cabelos - Continuou o contribuinte. - Recebi pelos correios esta carta, endereçada pela repartição, pedindo-me o pagamento imediato do imposto de...nem sei. Só sei que não tenho dinheiro e nem percebo de que imposto se trata. Que imposto é este?

Cardoso olhava já para o segundo da fila, quando o homem voltou a perguntar:

- Que imposto é este?

- Merda de cão.

- Peço desculpa? O senhor disse merda de cão?

O funcionário caiu das nuvens e procurou corrigir a asneira com a lábia aprendida em muitos anos de serviço público:

- É uma força de expressão: Cheira mal, está em todo o lado e ninguém tem culpa... É como a merda de cão, quero eu dizer...

João de Sousa Teixeira

 


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