Director: João Ruivo    Publicação Mensal    Ano IV    Nº45    Novembro 2001

Opinião

CRÓNICA

Crise existencial

Talvez ainda não tenha dito tudo o que deveria. Ou talvez não deva ou não saiba ou não queira ou não sinta ou não tenha que ser dito, segundo o que penso, mas deveria decalcar, a fazer fé no que pensar ou, por isso, no que julgas ser o pensamento normal.

Talvez não tenha ainda afirmado, confirmado, ratificado ou, simplesmente descrito a consensual afirmação esperada.

É capaz de ser frustrante esperar por algo que não surge nunca. Não é menos dizer o que todos esperam.

Tenho uma ideia: isso é incorrecto. É uma ditadura da maioria contra mim.

O que quero afirmar é possível, é de dentro. Ninguém tem o direito de pedir, ou tecnologia capaz de controlar o jorro de coisas que me ocorrem. Sei que preciso de as partilhar, que não terão sentido se assim não for, mas permitam que sejam minhas, ainda que vulgares e tenras, sem hipótese de defesa quando ensaiam os primeiros passos.

Afinal, quem na estação de embarque toma atenção a outros destinos para além do seu?

Provavelmente quem não esteja para tomar assento. Digo eu. Então vão ao cinema, vão dar uma volta, destrocem! Tomem o caminho da caserna e durmam o sono do retempero casto e pueril dos anjos alcímacos.

Nunca se me foram os tarambecos água abaixo, numa enxurrada não prevista; nunca fui alvo de atentado; nunca fui assediado, roubado junto a uma caixa de multibanco e, muito menos, morto numa cilada de traficantes de droga. Tenho tido alguma sorte.

A verdade é que isto acontece aos outros, a toda a hora. Mas o facto de acontecer para além do nosso corpo, para além do nosso volume com capacidade para a dor, tal não significa a nossa imunidade. Com efeito, aumenta a proximidade e a sensação de que a coisa existe e tem pernas para chegar aqui.

Postas as cartas na mesa, já que nos entendemos por sinais de comportamento social, falaremos de segurança.

Eu sinto-me seguro, visto que nada de especialmente mau me acontece. Participo em peditórios, conferências, manifestações, abaixo-assinados, e a mais não chego, de solidariedade com todos os que, por algum motivo, já foram vítimas de algo.

Isto não significa que não sinta por vezes medo, intranquilidade, desassossego, receios vários, como se diz. Pelo contrário, sinto até inquietude em matérias tão anódinas como sorrisos de anjo, discursos póstumos, reivindicações corporativas, suspeitas de infidelidade, discursos altruístas, maiorias parlamentares, concertos de solidariedade, cervejas sem álcool, para não falar nas boleias não solicitadas que me dão.

Queira-se ou não, ninguém tem a vizinhança desejada. Nem se sabe se amanhã não é o utente do segundo esquerdo, com quem mais privámos e chegámos até a combinar umas férias em conjunto, que nos armadilha, por inveja ou preconceito religioso, o elevador, no consabido instante em que o tomamos.

As televisões, ao invés de ajudarem, parecem mais preocupados em que me preocupe.

O Necas diz-me que é alarmismo, procura desenfreada de audiências, jogos de poder, baixo nível, e coisas que tais, todas em desabono das ditas. E se não é?

É claro que há vigílias, velórios, protestos, medidas governamentais, mas nada disso garante que o céu não nos caia em cima.

A minha vida tem sido um inferno de coisas que não me acontecem!

João de Sousa Teixeira

 


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