Director: João Ruivo    Publicação Mensal    Ano IV    Nº46    Dezembro 2001

Opinião

CRÓNICA

Os copos

Quis a sorte que a prova de desenho, no meu exame da quarta classe, fosse um copo. Um copo de borco. Tive bom pequeno. Mais que suficiente para a aprovação no primeiro teste escolar da minha vida. 
Permitam que levante este meu copo serôdio, mas por isso não menos sincero, em homenagem singela a todos quantos viram o mundo abrir-se de perspectiva tão marcante para o que haveria de converter-se no resto da nossa vida.

Ainda hoje recordo o empenho posto naquela prova. Havia o português, a matemática, a história. Só a prova de desenho me ficou na memória. 

Era um copo de vidro, vulgar, transparente, que, para complicar ou implicar, alguém virou do avesso. Não se trata aqui, como já expliquei, da exposição das entranhas do copo, que as não tem, mas de reforçar o insólito de um objecto colocado naquela posição de inutilidade: um copo só é virado quando dele não precisamos. Foi o que sempre pensei até àquele momento histórico da minha vida.

A atenção dada aos contornos do copo obrigou a ver que tinha dedadas, estava sujo. Provavelmente quem o virou não era pessoa asseada ou suava das mãos. Mas na verdade essa era uma questão sem interesse. Ninguém estava naquela situação para admirar as impressões digitais do professor ou talvez do contínuo que o pusera ali. Eis um copo, por instantes modelo, altivo, saliente, para ser visto no seu todo e não por partes ou detalhes, fossem eles quais fossem.

À medida que os traços se iam juntando nas exactas proporções do copo modelo, ia eu ficando com a estranha sensação (era eu quem estava cheio, não o copo) de que a sala se virara de pernas para o ar. Mas não passava duma ilusão. Se assim fosse, o copo ter-se-ia estatelado no tecto, a fazer de chão, teria ficado em cacos, minúsculos cristais, de bem mais difícil reprodução, para a minha condição de aprendiz de desenho. Em circunstâncias tais, o melhor seria adiar a prova.

A prová-lo estava o copo de vidro transparente, sujo e, originalmente de borco, mas intacto.

Poderia ser um cálice ou uma taça (uma chávena seria já outra coisa); um copo de vinho, de água ou de cerveja; um copo alto, baixo, com pé; com relevos, riscas ou artisticamente pintado por um operário da Marinha Grande. Para o efeito continuaria a ser um copo, ainda que cheio de um qualquer líquido colorido pudesse ter outra graça e assim me poupava ao esforço de dizer que se encontrava vazio. 

Por falar nisso, copo cheio ou copo vazio podem ter significados bem diferentes. De igual modo, meio cheio ou meio vazio. 
Fosse eu realizador de cinema em vez de me dedicar a esta espécie de semântica copista, naturalmente recorrendo a efeitos especiais, poderia agora mostrar-vos como transbordou o copo, a gota de água que o fez transbordar, nos E.U.A., no Iraque, na África do Sul, em Kisangani, na Jugoslávia ou, mais perto, nos dias de Barrancos, cuja gota era ministro e não voltou ao copo. 

Se estar com os copos é uma expressão com o significado de embriaguez, um eufemismo, claro está que o indivíduo em causa não engoliu os copos, fossem de vidro ou de plástico. O que aconteceu foi que bebeu demasiado álcool, utilizando um copo ou vários, tomando perversa a utilização de um objecto inofensivo e, ao mesmo tempo, concebido para saciar a sede aos que dela padecem, servindo a frase tanto para a cura da sede física, como de metáfora de fé religiosa.

O Indivíduo sujeito ao fenómeno gerado pelos vapores etílicos fica assim predisposto, ao contrário do ocorrido no meu exame de desenho, a ver todos os copos cheios e convencido que o mundo está às avessas. O mais difícil é desmenti-lo após a ressaca. O mais provável é demiti-lo. O mais fácil é parti-lo. Ao copo.

E pensar eu que tudo isto me veio à cabeça no dia em que a Assembleia da República suspendeu os 0,2 de alcolemia!...

João de Sousa Teixeira

 


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