GENTE & LIVROS
Roddy Doyle
«Fiz pontaria à montra da
Tyler‘s.
Ouvi o primeiro tiro a bater no tijolo. E então disparei. Ouvi, depois vi o vidro da montra a partir-se e a desaparecer enquanto o gatilho me projectava o dedo para a frente. Puxei a culatra para trás e o cartuxo voou-me por cima do ombro. Premi outra vez o gatilho e disparei contra as botas e chinelos desprotegidos. A seguir, disparei contra a montra da Noblett‘s, e os bolos e natas saltaram dos expositores.(…) Depois voltei atrás e disparei sobre o Pillar Café – eu tinha sido expulso dali antes mesmo de pôr os dois pés lá dentro, eu e o Victor; ainda sentia o cheiro do hálito do gerente – e destrui todas as montras do café de um modo pausado e preciso, que me impressionou sem me surpreender. Alvejei e matei tudo o que me tinha sido negado, toda a opulência e snobismo que, por trás das montras e dos ferrolhos tinham troçado de mim e de centenas de milhares de outros como eu, toda a injustiça e desigualdade, e todos aqueles sapatos – enquanto os rapazes retalhavam a tropa».
In Uma lenda chamada Henry
Roddy Doyle nasceu em Dublin, Irlanda, em 1958. Estudou em St. Fintan‘s Brothers School em Sutton e fez os estudos universitários na University College em Dublin. Durante 14 anos ensina Inglês e Geografia na Greendale Community School, em Kilbarrack. Sempre apaixonado pela leitura e pela escrita o seu primeiro romance The Commitments sai em 1987. Em 1991 é adaptado para o cinema pelo realizador Alan Parker com o título “Loucos pela Fama”. Publica The Snapper em 1990 e The Van em 1991 que em conjunto com The Commitments constituem uma trilogia. O escritor vê também estes dois romances transpostos para a tela, pelo realizador Stephen Frears. Em 1993 o seu romance Paddy Clarke Ha Ha Ha ganha o maior prémio literário Inglês, o Booker Prize. Neste livro o escritor dá voz a um menino irlandês que, nos finais dos anos 60, conta o seu dia a dia e as dificuldades que o casamento dos pais atravessa. A obra vende mais de meio milhão de exemplares e é traduzida para 19 línguas. Doyle passa a dedicar-se inteiramente à escrita. A Mulher que ia Contra as Portas é publicado em 1996 e é um retrato sobre a violência doméstica contra as mulheres. Seguem-se A Star Called Henry - Uma Estrela Chamada Henry - o primeiro livro de uma triologia ainda por escrever - e os Risadinhas, a primeira incursão do escritor no literatura infantil.
Roddy Doyle, casado com Belinda e pai de dois filhos Rory e Jack, vive ainda na cidade onde nasceu, Dublin.
O
LIVRO. Uma Estrela Chamada Henry (A Lenda De Henry Smart). No dia 8 de Outubro de 1901 nasce Henry Smart. Fica com o nome de um irmão já morto. Órfão muito cedo é lançado para as ruas de Dublin com Victor, seu irmão mais novo, tendo como única herança a perna de pau do pai e uma forte determinação em sobreviver. Perde o irmão e continua sozinho. Na segunda-feira de Páscoa de 1916, com 14 anos e ao serviço do Exército Civil Irlandês, Henry Smart encontra-se barricado no edifício do Correio Central lutando contra o domínio britânico. Apaixona-se pela mulher que lhe ensinou a escrever o nome, ingressa nas fileiras do IRA, cruza-se com os homens que fizeram a República da Irlanda, Michael Collins e De Valera. A sua história confunde-se com a História da Irlanda e estes são só os seus primeiros 20 anos…
NOTA. Uma lenda Irlandesa diz existir no céu uma estrela por cada criança morta. No início do século passado a pobreza fazia tantas vítimas entre as crianças que o céu era por certo muito
brilhante. 
Eugénia Sousa
Florinda Baptista
LIVROS
Novidades
PIAGET. A Editora Piaget publicou Os Sentimentos da Natureza de Dominique Bourg. O autor transmite uma informação interessante e precisa sobre as representações da natureza para as grandes civilizações. Para cada religião existe uma forma de “Sentir a Natureza” para cada povo também São dez contribuições dos melhores especialistas numa abordagem ecológica diferente. Os Sentimentos da Natureza vem ao encontro de um grande problema dos nossos dias, a protecção ambiental.
EUROPA-AMÉRICA. A Noite dos Elfos de Jean-Louis Fetjaine é a segunda parte da saga iniciada com O Crepúsculo dos Elfos. Quando os homens exterminaram os reinos anões o mundo mergulhou nas trevas. Os elfos podiam enfrentar os homens, mas refugiaram-se nas florestas ignorando o perigo que os ameaça. Para impedir que o duque Gorlois expanda o seu domínio a esperança é Uter, o amante da rainha dos elfos. Uter, com a ajuda do druida Merlim e o poder que a rainha Lliane lhe concede, torna-se Pedragon, o líder dos povos
livres.

BOCAS DO GALINHEIRO
Jesus Cristo Superstar

Quando em 1970 a dupla Andew Lloyd Weber e Tim Rice compôs a ópera rock “Jesus Christ Superstar”, estava-se mais perto de imaginar uma escandaleira das antigas, temendo-se uma reacção negativa da Igreja, do que o retumbante êxito da ideia. Primeiro o disco, depois na Broadway Daí até a peça passar ao cinema foi um salto. Foi pela mão de Norman Jewinson que em 1973 a versão para o grande écran invadiu as salas de todo o mundo. Com igual impacto. Sobretudo pelas canções. Como musical, o filme está longe de ser uma referência do género, apesar da originalidade de algumas soluções cénicas. As melodias, essas, ficaram-nos para sempre no ouvido. A Castelo Branco chegou um bocado mais tarde, mas com direito a repetição no velhinho Cine-Teatro Avenida, à beira dos ataques de kung-fu. Mas isso são outras histórias. O que nos trás aqui hoje é mesmo Jesus Cristo no cinema.
Ao contrário de outras, a Igreja Católica não proíbe a representação dos seus ícones, o maior dos quais é justamente Jesus Cristo, cuja característica fundamental, entre outras mais óbvias, claro, é não ser indiferente a ninguém. Pelas boas e pelas menos boas razões. Daí que não estranhe o interesse do cinema por esta figura impar da humanidade, ou pela religião que lhe legou
É assim que em 1902 o francês Ferdinand Zecca, realiza “A Vida, Paixão e Morte de Jesus Cristo”, talvez a primeira obra sobre o tema. Em 1916 D. W. Griffith dirige uma das suas obras emblemáticas, “Intolerância”, onde, entre outros episódios, retracta a vida de Jesus. Ainda do tempo do mundo não podíamos deixar de referir os grandes clássicos do tema: a primeira versão de os “Dez Mandamentos” (1923), do mestre Cecil B. DeMille, um fenomenal êxito de bilheteira na altura e que refaz em 1956, já como grande produção, com Charlton Heston, Yul Brynner, Edward G. Robinson, Anne Baxter e muitos outros que fizeram dele um dos maiores épicos bíblicos de todos os tempos e “Rei dos Reis” (1927), do mesmo realizador.
Elementar a atracção de Hollywood por este nazareno singular. Não admira pois que começassem a aparecer as grandes produções, de que destacamos “A Túnica Sagrada” (1953), de Henry Koster, a primeira obra rodada em CinemaScope, adaptação de uma novela de Lloyd C. Douglas, centrada no centurião romano que comandou a crucificação de Cristo, com um pouco convincente Richard Burton, ao contrário do que era habitual nele. “Ben Hur” (1959), de William Wyler, centrado no aparecimento do cristianismo e na perseguição de Roma aos primeiros cristãos e o seu lançamento às feras, oportunidade para o nosso Nuno Salvação Barreto brilhar com uma valente pega de caras, foi outro dos míticos filmes da época de ouro dos 70m/m.
Mas nem só aos chamados artesãos dos grandes estúdios foram entregues estas super produções bíblicas. Nicholas Ray também entra na liça e não se sai mal. Pelo contrário. Arranca em 1961 um “Rei dos Reis” filmado de forma superior e com narração de Orson Welles. Seria o último realizador de quem se pensaria um filme do género, tal como já havia acontecido em 1960 quando Stanley Kubrik fez o incontornável “Spartacus”. Mas, os génios são assim.
Outros filmes seriam aqui chamados, como “Poncio Pilatos” (1961), de Irvin Rapper, “Barrabás” (1962), de Richard Fleicher, “A Maior História Jamais Contada” (1965), de George Stevens, que pretendia ser a obra definitiva sobre a vida de Jesus, ou “Jesus de Nazaré” (1977), de Franco Zeffirelli, outra grande superprodução mais virada para o mercado televisivo.
Porém, uma figura como Jesus Cristo teria que ser visto de pontos de vista menos lineares. Tanto mais que a personagem o merece. Não estranha pois que uma mão cheia de realizadores tenham arriscado abordagens menos pacíficas, casos de “O Evangelho Segundo S. Mateus” (1964), de Pasolini, “A Última Tentação de Cristo” (1988), de Martin Scorsese, centrado mais no homem que na iconografia, este sim, contestadíssimo pela hierarquia católica, como já o fora a obra de Kazantzaki de que foi retirado, sem esquecer o hilariante “A Vida de Brian” (1979), dos Monty Python, sobre um tal Brian que nasceu no mesmo dia e à mesma hora que Jesus Cristo, só que na cabana ao lado. Puro azar!
Por cá estreia em 1963 “O Acto da Primavera”, do mestre Manuel de Oliveira, recolha de uma representação popular da Paixão de Cristo na aldeia de Curalha, Chaves. Alguns anos mais tarde, em 1989, no Canadá, Denys Arcand realiza “Jesus de Montreal”, igualmente uma representação da Paixão, mas aqui com um olhar contemporâneo sobre Jesus. O novo Cristo? Talvez. Aliás, a ideia não é nova. Em 1958 com “Nazarin”, Luis Buñuel deu-nos um novo Cristo: o paralelismo do padre Nazário com Jesus é por demais óbvia.
Porém, uma coisa é certa, mais simbólicos, mais iconográficos, mais discretos, como “A Palavra” (1955), de Carl Dreyer, em que a questão fulcral é a da fé, não a da figura, Jesus a todos atrai. Agora e sempre...

Luís Dinis da Rosa
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