PAQUETE DE OLIVEIRA
ANALISA PROGRAMAÇÃO
Televisões alimentam
a vulgaridade

Paquete de Oliveira defende que é através do aumento da cultura dos telespectadores que se poderá diminuir o impacto dos chamados programas “da vida real”. Em entrevista exclusiva ao «Ensino Magazine», o sociólogo e professor
Afirma não acreditar na eficácia de uma intervenção do Estado nas programações, para além de fazer cumprir as leis em vigor.
Paquete de Oliveira não tem dúvidas de que os portugueses se vão cansar dos “reality shows”. Não é caso para dramas, diz.
Programas como o «Big Brother» e «Bar da TV» podem ser prejudiciais à sociedade?
Eu não diria que podem ser nefastos, quando muito talvez sejam sintomas de um determinado nivelamento cultural por baixo. O problema é em termos de qualidade. Temos que ter em consideração que os programas televisivos dividem-se, essencialmente, em dois grandes géneros: os “reality shows” e os outros. As discussões polémicas incidem sobre os primeiros e não tanto sobre os restantes. Os “reality shows” portugueses têm resvalado para a exibição de cenas pouco edificantes para o grande público. O criticável é terem apostado na exploração do centro da intimidade das pessoas e no sentimentalismo de certa forma primário da população. A polémica em redor deste tipo de programas não nos pode, no entanto, fazer confundir a árvore com a floresta, ou seja, deixar de considerar que há outros géneros de programas, de características radicalmente diferenciadas. É importante distinguir ambas as dimensões, porque não se deve avaliar as programações como um todo único e indiferenciado. Há programas cujo conteúdo até é de sublinhar, embora também existam outros que não primam pelos desejados padrões de qualidade.
O fenómeno da grande adesão aos “reality shows” não é exclusivamente português…?
Certamente. Trata-se de um fenómeno que não é apenas nacional, existe em todos os países. O atractivo que as reacções humanas dos outros despertam em cada um é um elemento global e não só nacional. Por outro lado, o interesse pelas cenas de sexo também não é um fenómeno apenas típico do nosso país. Em nações culturalmente posicionadas em níveis próximos da nossa e que possuem condições semelhantes às da sociedade portuguesa, tais programas também alcançaram grande sucesso. O êxito que os “reality shows” têm alcançado em Portugal não é de estranhar, se tivermos em consideração que o mesmo tem acontecido além fronteiras. É um fenómeno que se tem verificado com idêntica amplitude e repercussão nos outros países, em termos de impacto no público e de sucesso alcançado. Baseia-se num formato, à partida, inovador e que mexe muito com as reacções, os comportamentos e as múltiplas situações caracteristicamente próprias do ser humano. De alguma forma, os telespectadores revêem-se naquilo que observam, mesmo se isso não é a “vida real” como é anunciado, mas uma construção a partir da tal realidade. No entanto, no estrangeiro, este tipo de programas não levantou tanta polémica nem tão generalizada como por cá, o que é muito específico do nosso país e suscita sérias e aprofundadas reflexões.
Como explica esse facto?
Desde há muito que em Portugal se discute fortemente aquilo que se relaciona com a televisão. Suscita sempre um amplo debate. Tradicionalmente, a televisão constituía o “prato forte” dos consumos culturais, numa sociedade ainda com atrasos de desenvolvimento muito acentuados. Hoje, julgo que já não é tanto assim. As estações optam por transmitir emissões dirigidas sobretudo para certos extractos sociais da população, que concorrem fortemente para os elevados níveis de audiências obtidos. Temos de compreender, dada a lógica eminentemente empresarial em que se movem. A enorme adesão aos chamados “programas da vida real” relaciona-se com o facto da televisão alimentar um certo consumo da vulgaridade e da superficialidade, com vista à obtenção do máximo de audiências e de grandes públicos. Por outro lado, há uma morbidez pelo consumo deste tipo de programas, porque exaltam a emotividade dos telespectadores. Procedem à representação camuflada ou, pelo menos, anunciada, da vida real. No entanto, esta é, no fundo, em certa medida, fictícia, porque assenta em ambientes que não são naturais, mas antes artificiais e construídos dentro de determinados limites. Tenta-se fazer passar por natural aquilo que até pode ter a aparência disso, mas na verdade não o é, se se proceder a uma análise adequada do modo como os programas são elaborados e do tipo de modelo de produção a que obedecem. Importa, igualmente, ter em linha de conta que aquilo que é supérfluo é mais extensível a largos públicos do que os programas que exigem uma maior reflexão sobre o que é apresentado. A enorme adesão aos “reality shows” interliga-se, de forma bastante estreita, com o ritmo de vida moderna. As pessoas passam horas no trânsito ou nos transportes vindas do trabalho e quando chegam a casa estão predispostas a verem programas fáceis, que as entretenham. Esses produtos televisivos correspondem a tal necessidade. Não é por acaso que o «Big Brother» e outros do género são difundidos, precisamente, no “prime-time”, ou seja, no horário nobre televisivo, à noite. São programas que não apelam ao pensamento elaborado, nem a uma posição crítica dos telespectadores.
Como perspectiva a saída da actual situação?
As estações comerciais (no estrangeiro são chamadas assim e não privadas como em Portugal) são sistemas industriais que se movem na lógica do negócio, da obtenção de lucros. Tratam-se de empresas que têm como objectivo “vender” ao maior número possível de pessoas de uma comunidade os seus produtos. Penso que as alterações significativas da situação do panorama televisivo actual nunca virão dos próprios operadores de TV, mas antes através de outros sistemas de formação e de desenvolvimento cultural. A escola tem, a este nível, uma responsabilidade muito específica, que não pode nem deve ser negligenciada. O crescimento cultural dos públicos levará a que estes venham a ter outro tipo de apetências televisivas, nomeadamente por programas de maior qualidade. Uma população possuidora de níveis culturais mais elevados estará em condições de exigir emissões mais ricas, em termos de conteúdo e que contribua fortemente para incrementar os seus conhecimentos de si própria, das outras comunidades e da realidade do mundo em que vive, compreendendo com maior profundidade e já não apenas superficialmente os fenómenos que a circundam. É toda uma mutação de mentalidades e de formas de olhar para os produtos televisivos que são novas, exigindo uma alteração da atitude dos telespectadores, para uma posição mais activa e menos passiva, mais reflectida e menos ligeira. O próprio desenvolvimento cultural do país só terá a ganhar com isso.
Que intervenção poderá ter o Estado na programação?
Num Estado de Direito e de Liberdades como o nosso, é difícil uma intervenção directa dos poderes públicos nas estações televisivas, porque isso poderia ser confundido com manifestações de censura. Tais instâncias não podem, no entanto, abdicar da sua condição de reguladoras daquilo que se passa no espaço público. Cabe às televisões optarem pela auto-regulação se assim o entenderem. Mas, continuo a defender o papel da escola enquanto promotora de uma elevação do nível cultural dos telespectadores. É uma posição que venho preconizando desde há muito, embora possa ser encarada por outros como idealista. Num Estado de Direito, é necessário fazer respeitar as leis em vigor. Se as estações incorrerem em irregularidades e tiverem de ser sancionadas, pois que o sejam. Outras medidas tomadas por organismos governamentais serão sempre ocasionais e conjunturais e que não solucionam os problemas de fundo que se colocam. A criação de novos instrumentos de intervenção será alvo de polémicas e discussões, em vez de terminar com as mesmas. Não me parece é que as televisões estejam dispostas a alienar os seus dividendos financeiros, obtidos precisamente pelas audiências desses programas contestados por alguns.
A tendência é para os portugueses se cansarem dos tais programas da “vida real”?
Penso que sim. São programas que se consomem a si próprios. Os produtos televisivos que são, por natureza, de tipo comunicacional e do domínio do espectáculo atingiram um nível importante na escalada das audiências, é certo. Mas, estou convicto de que o público os irá substituindo por outros géneros de propostas que lhes sejam apresentadas. Não se irá limitar aos “reality shows” que têm sido disponibilizados, é natural que assim venha a suceder.
Não é, então, caso para preocupação excessiva?
Exactamente. Um dos aspectos mais negativos que se tem revelado com a situação actual é a dramatização desnecessária que se verificou em torno da matéria. Os políticos, nomeadamente, fizeram o jogo das televisões. A verdade é que as estações privadas colocaram toda a gente a discutir o problema dos “reality shows” e a ver os programas tão criticados. O resultado foi uma ainda maior promoção de tais programas e…o aumento das respectivas audiências. Afinal, o “fruto” apresentado como “proibido” ou, pelo menos, não recomendável, é sempre o “mais apetecido” e a tendência é para que um número crescente de pessoas vejam os programas alvos de intensa polémica. Recordo que desde há muito que se afirma que sexo e crimes são elementos que “vendem” em termos de imprensa e também já no meio televisivo. Os indicadores disponíveis indicam que esta tese continua a ser verdadeira na actualidade. Para além disso, as televisões podem sempre responder às críticas que são feitas à sua programação, afirmando que transmitem aquilo que os seus públicos querem ver, o que até não é errado. A polémica e a discussão parecem intermináveis, neste contexto, se não alterarmos o enfoque sobre a questão diversificando-o e abarcando elementos extra meio televisivo, nomeadamente os relativos à formação da população.
Jorge Azevedo
Pedro Cardoso (foto)
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