Director: João Ruivo    Publicação Mensal    Ano III    Nº32    Outubro 2000

 

Entrevista

ODETE SANTOS EM ENTREVISTA

Camarada Odete

Odete Santos é deputada pelo Partido Comunista Português na Assembleia da República. Advogada, aos 54 anos é uma das mulheres mais conhecidas na vida política portuguesa. Defensora dos direitos humanos e das oportunidades iguais, amante da cultura e da poesia, Odete Santos é uma mulher com convicções fortes. Simpática, respondeu ao desafio do Ensino Magazine para falar sobre educação. Combinámos às 16 horas de um dia de Setembro, na Assembleia da República. E a pontualidade comunista cumpriu-se. Eram 16h05 quando começámos a conversar. Falámos durante uma hora, e o ensino em Portugal foi apenas um ponto de partida para uma viagem que terminou porque tínhamos que apanhar o expresso que nos trouxe de volta à redacção do Ensino Magazine.

Um dia escreveu que um estado de Direito Democrático tem de garantir um Ensino Superior Público forte, de qualidade, pilar do progresso no País. Foi desse ensino que falámos com alguém que, filha de professores do ensino primário, acabou por entrar no curso de direito, “numa época em que a Faculdade sonegava saberes, talvez devido ao fascismo”. Hoje, o ensino superior continua a marcar o progresso do País. Os subsistemas universitário e politécnico tentam afirmar-se pela diferença. A saúde tenta formar mais médicos e enfermeiros. O País continua a importá-los de Espanha. Pior que isso, deixa ir jovens candidatos ao curso de medicina estudar para o País vizinho. Até porque, como lembra Odete Santos, algumas universidades espanholas vêm a Portugal fazer os testes de admissão. Depois há toda uma alteração de valores, e o aparecimento de novas gerações, a que Odete Santos não chama de rasca, mas considera que estão à rasca.

No ensino superior há muita oferta de cursos, mas nem sempre eles correspondem às expectativas de quem os frequenta...

Há uma proliferação muito grande de estabelecimentos do ensino privado, muitas vezes com um sistema que eu já senti na pele, que é uma espécie de caça ao dinheiro, pois as notas para o ensino oficial saíam depois das matrículas para o ensino privado. Ora isto fez com que muita gente se matriculasse no privado, por não saber a nota que iria obter. Depois tinham acesso ao oficial e perdiam o dinheiro pago na inscrição nas instituições privadas.

Mas e em relação aos cursos?

Aquilo que se verifica é que há uma proliferação muito grande de estabelecimentos de ensino superior privado. Escolas que, por vezes, abrem cursos que não se sabe muito bem para que é que servem. E essa proliferação, pese embora muitas delas terem como docentes, professores do ensino público, faz com que haja deficiências de formação.

Mas o País está a formar os quadros que necessita para o futuro?

Penso que não. Não tem sido feita uma planificação de fundo. Não se sabe em que direcção as várias regiões do País vão ser desenvolvidas, pelo que não se sabem quais as áreas mais deficitárias. Neste momento verifica-se que há excesso de licenciados nalgumas áreas, como no Direito. Isto porque se trata de uma licenciatura fácil de colocar a funcionar. Ou seja, não precisa de laboratórios, bastam umas mesas e umas cadeiras e os professores. O Direito tem constituído uma fuga de muitos jovens, só que actualmente há excesso de licenciados nessa área. Depois vêm os problemas de empregabilidade. Este é apenas um exemplo entre muitos, pois em meu entender não tem existido uma planificação de fundo para o desenvolvimento do sector educativo no País.

Então a falta de planificação é o factor responsável pelo excesso de formados em determinadas áreas?

Sim. Os distritos de Castelo Branco, Guarda, Viseu e Portalegre votaram massivamente contra a Regionalização, que poderia solucionar parte desses problemas. Mas não é necessário haver Regionalização para que essa planificação seja feita. Basta que cada Distrito saiba quais as suas necessidades e que procure formar gente para essas áreas. Isso além de provocar desenvolvimento iria fixar pessoas. O Distrito da Guarda, que é o meu, é um Distrito desertificado porque não conhece desenvolvimento significativo, o que leva as pessoas a fugirem para outros locais, como aconteceu com os meus pais. O que sucede neste momento é que também há uma grande dependência do nosso País em relação às políticas determinadas pela União Europeia. Há coisas que nos são sarseadas, como está a acontecer na agricultura. Isto é, poderia haver grandes perspectivas para a área da agronomia se houvesse um futuro risonho nesse sector, o que não acontece.

Uma das áreas mais deficitárias em Portugal é a Saúde...

Sem dúvida. E até é um escândalo o que se está a verificar com os jovens portugueses a irem estudar para Espanha. De Lisboa vão muitos para Badajoz, até porque agora até são as universidades espanholas que vêm a Portugal fazer os exames de admissão. Eles já nem precisam de se deslocar. Depois verifica-se que há falta de médicos e a maioria dos que exercem estão instalados no Litoral. Isto porque é o Litoral que capta o grosso do investimento, apresentando hospitais mais evoluídos, o que permite aos médicos estarem sempre a aprender, o que não sucede no Interior. Daí que também se compreenda, entre aspas, essa fuga dos médicos para o Litoral.

E o qual é a solução para evitar isso?

Tem que haver uma formação em maior número de médicos e enfermeiros. Porque com aquelas notas astronómicas que ainda são exigidas, tudo fica mais complicado. Porque nem sempre um excelente estudante dá um bom médico. Nesse capítulo, o ensino está um pouco desfasado da realidade, pois não forma de acordo com o País real que temos. No caso específico da medicina, as notas são tremendas. Há no entanto outro factor importante e que condiciona tudo o resto, que é a política de contenção das despesas, imposta pela União Europeia. O que faz com que os países contenham os investimentos nas diversas áreas. Agora a saúde tem que ter investimento e não se pode estar a ver o que se gasta. São precisos mais médicos e mais enfermeiros, como são necessários incentivos para os profissionais da saúde que vão para as periferias e para o Interior do País.

Com estes problemas todos, importam-se médicos do país vizinho...

Pois é, vê-se isso na televisão e é um escândalo. É que no Litoral também não há médicos suficientes, pois também vive mais gente nessa Região do País.

O atraso da integração das escolas superiores de enfermagem nos Institutos Politécnicos está a atrasar a formação de mais técnicos de saúde?

É evidente que está. E eu até digo mais, fala-se sempre na contenção das despesas mas, por exemplo, no caso dos enfermeiros, como são poucos têm que trabalhar muitas horas por dia, que terão que ser pagas. Por isso não se percebe porque é que não se formam mais enfermeiros.

De que forma é que as instituições de ensino superior podem contribuir para o desenvolvimento das Regiões em que estão inseridas?

Voltamos àquilo que falávamos há pouco. Elas podem contribuir para o desenvolvimento das suas regiões desde que haja planos estabelecidos sobre o crescimento económico e o desenvolvimento dessas regiões. Ou seja, tem que existir uma excelente planificação e um estudo sobre as necessidades de cada local. Por outro lado, tem que haver uma racionalização dos recursos entre as diversas instituições de ensino superior. O País é pequeno e em área vizinhas não se deveriam repetir cursos, mas sim complementar-se. 

As instituições de ensino superior não estão satisfeitas com o sistema de financiamento, até porque houve cortes orçamentais. Qual era a solução para resolver o problema?


...Está a colocar-me uma questão muito específica... Mas vejamos, todo este problema tem que ser visto na globalidade. Se formos ao sector da saúde, não devem existir cortes, se formos à educação também não devem existir, se formos à Justiça acontece o mesmo, pois a morosidade dos processos exige investimentos. No meu entender não devem existir cortes na área da educação, pois estamos a formar jovens para o futuro. Aquilo que tem que ser feito é uma melhor administração das verbas. Isso obriga a uma política económica de fundo diferente da existente. Por trás da míngua de verbas está uma questão fundamental: a privatização de sectores importantes na economia portuguesa, o que retirou ao Estado o produto de muitas riquezas que poderia investir na satisfação de direitos sociais. Ficar sem a banca e sem os seguros implicou um corte de receitas para o orçamento de Estado. Se juntarmos a isso benefícios fiscais que se dão a empresas, verifica-se que míngua do orçamento de Estado se faz à custa do enriquecimento de alguns.

Com essa míngua que refere teme que o sistema de Segurança Social entre em derrapagem?

Creio que a situação não é tão alarmante como se dizia. Na base do alarme que se fez em volta da Segurança Social estava um objectivo, que era a privatização da parte mais rentável desse sistema e deixar o regime existente, com pouco dinheiro, para os pobrezinhos. É muito demagógico dizer que há pessoas que recebem pensões elevadas, mas não se diz que essas pessoas descontaram do seu vencimento, que era alto, e esse dinheiro serviu para pagar subsídios de doença, etc. Tirando da Segurança Social pública pessoas, com ordenados elevados, deixariam de entrar na Segurança Social importantes contribuições para manter outros que ganham menos e que também vão recorrer ao sistema. O sistema da Segurança Social rege-se pelo princípio da solidariedade. Os que ganham mais descontam em proporção ao seu vencimento e esse desconto vai servir para os outros que ganham menos. É certo que o sistema atravessou alguns problemas, mas porque não entrou, durante muitos anos, do Orçamento de Estado qualquer verba para a Segurança Social.

Voltando ao ensino, há concorrência desleal entre o público e o privado?

O sistema que defendo e que esteve na constituição, era que o ensino privado fosse supletivo do ensino público. Isto é, primeiro bastava o ensino público e só depois para satisfazer áreas que o público não conseguisse dar resposta é que existiria o ensino superior privado. Mas não é isso que se verifica, pois por várias maneiras é o público que está a ser vítima de concorrência desleal. Nomeadamente quando uma escola de ensino privado dá altas classificações aos alunos, pois eles quase que o exigem, estão a pagar para isso. No público, ao não haver essas notas mais elevadas, os alunos que terminam os seus cursos estão atrás dos jovens formados nos privados com notas mais altas, no que respeita às preferências pelos seus serviços.

Os Politécnicos reclamam também a atribuição de mestrados e doutoramentos. Concorda com essa reivindicação?

Eu penso que têm que existir regras muito bem definidas nessa matéria. Antigamente para se tirar um mestrado, por exemplo, era necessário ter notas elevadas. Hoje nem sempre sucede isso. Os critérios de atribuição dessas pós-graduações têm que ser claros.

Hoje em dia exige-se um pouco mais aos professores. O aluno está mais entregue à escola...

Antigamente os professores eram mais pais do que agora. Quando eu andava na escola primária, os professores eram dedicados, até mesmo no que respeitava à alimentação e ao material escolar. Os meus pais eram professores e levavam, muitas vezes, alunos a almoçar lá em casa. Agora, a ideia que eu tenho é que o professor está mais desligado e começam a formular-se exigências à família que ela não consegue responder. Assiste-se muitas vezes a um passar de bola da escola para a família e da família para a escola. A escola diz: os pais têm que acompanhar mais os filhos. E os pais dantes acompanhavam-nos mais. E os pais dizem o contrário. Daí que atirem para cima dos professores alguns problemas, que estes não podem responder como se lhes exige. Assim, a escola e a família entram em conflito. Seria bom que conseguissem em conjunto fazerem um trabalho que possa permitir ao aluno ter melhores condições.

O número de alunos vai diminuir bastante nos próximos 10 anos, é da opinião que a aposta na formação ao longo da vida será uma solução para as instituições de ensino superior?

A formação ao longo da vida é fundamental. Já que as coisas nem sempre foram planificadas, tendo em atenção a evolução da população, a aposta em cursos desse género é uma aposta importante para essas instituições.

Tradicionalmente a juventude é muito crítica ao sistema, como de alguma forma o PCP também tem estado ao longo de todos estes anos. Acha que a juventude se tem aproximado das posições do PCP, ou será que temos uma juventude menos crítica?

A juventude por norma é crítica e aquilo que se verificou nos últimos anos é que os jovens estão mais activos e não têm medo de defender os seus interesses. Nunca me lembro de ver uma manifestação de estudantes do ensino secundário como aconteceu recentemente. Há algum tempo chamaram esta geração de geração rasca. Eu não diria isso, diria que é uma geração à rasca. Uma geração que foi iludida por sinais exteriores de riqueza. Ideologicamente eu não digo que a juventude conhece a ideologia do PCP. É que Marx foi riscado do ensino da filosofia. Se perguntar aos jovens o que está na base do comunismo, muitos saberão, mas muitos não saberão. Mas em termos de objectivos na educação, aí não tenho dúvidas que eles sabem o que nós defendemos. O mesmo acontece com os trabalhadores, mesmo aqueles que votam PS ou PSD, muitas vezes estão de acordo connosco naquilo que defendemos para a sua classe.

Não pensa que a sociedade está um pouco baralhada com as ideologias dos partidos, por exemplo quando vêem um presidente da Câmara mudar de partido de um mandato para outro?

Isso é que dá uma má imagem dos políticos. Em termos de opinião pública é vulgar ouvir dizer-se que são todos iguais. E são os partidos que defendem os seus ideais, que sofrem mais com essa má imagem. Além disso, acresce-se outra questão, que se junta ao ângulo de ataque do sistema partidário, que está relacionado com as organizações não governamentais, que dizem: “somos nós que temos que trabalhar, que os partidos não fazem nada. O que dá mais uma vez uma má imagem dos partidos
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