MÚSICA NO CORAÇÃO
O fado bailado de Rão
Kyao
Tem como inspiradores Charlie Parker, Jonh Coltrane e Dexter Gordon, mas é no maestro indiano Ragunath Seth que tem uma das suas grandes fontes de inspiração. Rão Kyao optou por viajar para terras indianas para aprofundar os seus conhecimentos sobre a flauta de bambu indiana. Hoje, Rão Kyao procura abarcar no seu próprio universo o grande mundo dos descobrimentos portugueses. Fado Bailado foi um dos discos que o celebrizou em Portugal, tendo ganho um disco de platina com esse trabalho.
Curiosamente a carreira musical daquele músico começou em terras francesas, quando em 1973 decidiu embarcar naquela que foi a sua primeira grande viajem musical. Em Paris toca com músicos de diferentes culturas, desde africanas às indianas. “Tinha que começar por algum lado”, confessa ao Ensino Magazine, horas antes do início do seu espectáculo no Cine Teatro Avenida, em Castelo Branco, onde tocou para mais de 600 pessoas, no aniversário os Politécnico.
Em entrevista ao Ensino Magazine Rão Kyao fala do seu percurso, das opções que tomou, dos discos que editou. Fala também o maestro que ainda hoje o influência e por quem nutre uma especial amizade. Silêncio que se vai ouvir o fado.
Em 1973 decidiu viajar para Paris...
Eu ainda era um miúdo, foi como eu comecei a minha carreira. É como um tipo estar no Liceu e ter que começar por algum lado. Houve circunstâncias que me possibilitaram a que eu fosse para Paris e que me permitiram tocar com grupos de diferentes etnias. Foi uma forma de me lançar no mundo da música.
A música indiana começou a ter uma influência sobre si, desde muito cedo?
Sim, é um facto. Já há bastante tempo que eu sou influenciado por esse tipo de música. Quando a ouvi a primeira vez pareceu-me que já a tinha ouvido em qualquer outro sítio. Tem algo de intuitivo e senti alguma familiaridade com esse estilo. Daí que tentasse aprofundar os meus conhecimentos sobre a música indiana. Nós próprios, os portugueses temos essa familiaridade com as suas formas mais românticas.
Em 1976 e 77 surgiram dois álbuns, que se traduziram em dois sucessos. Foi um excelente ponto de partida para a sua carreira?
Bem não se pode dizer que tenham sido grandes sucessos, foi de facto o meu começo nas gravações. Tive a sorte de começar a gravar cedo que me ajudou muito na minha carreira. E esses discos acabaram por ser uma boa plataforma para começar a tocar e a apresentar as minhas composições.
Depois optou mesmo por ir estudar para Bombaim. Porquê?
Foi a continuação desse amor que tinha por aquele género musical que me levou a aprofundar os meus conhecimentos. Comecei a estudar com o maestro Ragunath Seth, que é um grande flautista, um homem da música, com que aprendi muito. Convivi com ele diariamente, tocámos e ensaiamos muitas vezes. No fundo tratou-se também de conseguir uma orientação genérica em relação à atitude da música, em relação ao seu significado, nas suas várias vertentes, amorosa, afectiva e a própria técnica da música que não deve ser desviada da parte do coração.
Fado Bailado, em 1983, foi o disco que mais o popularizou...
Foi um disco que surgiu numa altura em que teve de facto uma aceitação muito grande. De certa forma alargou-me a minha exposição em relação ao público. Foi uma experiência muito boa, até porque cada disco para mim é sempre uma experiência diferente.
Como é que se sente como o primeiro artista português a conquistar um disco de platina?
Fiquei bastante satisfeito, mas a música não é só isso. Pois a música não é só isso, tem evolução, é um caminho interior, uma relação que nós temos com a nossa parte espiritual e com a parte divina. Todos factores que também são importantes.
Depois de Fado Bailado lançou outros trabalhos, como Estrada da Luz, Oasis, Virgens na Minha Terra. Agora lançou o Junção. Como é classifica este seu último trabalho?
É um trabalho muito especial, pois consegui-me juntar com a Orquestra Chinesa de Macau, para escrever uma suite musical onde há vários temas que exemplificam a presença de Portugal naquele território. Tive que pensar em composições que não fossem portuguesas nem chinesas, mas sim de Macau, porque Macau não é Portugal nem é China. É Macau. Depois também quis demonstrar no disco a nossa maneira de ser integracionista, integra-se com outras culturas e maneiras de viver, com bons resultados. Nós não deixámos em lado nenhum uma ocupação feita na base da força, mas sim na base da ligação e compreensão, da tolerância e do amor.
O povo português é um povo aventureiro. Considera-se um aventureiro?
Sim, o grande músico é aquele que tem uma raiz muito forte e ao mesmo tempo é aventureiro, ou seja que não se encosta ao facto de ter uma raiz muito forte, mas tem também a sua parte aventureira, de forma colocar-se ele próprio em questão, de forma a surpreender-se a si própria. Amália Rodrigues dizia uma frase importante: que só gostava de se ouvir, quando se conseguia surpreender a si própria. E é uma grande verdade.
A música portuguesa está a seguir o caminho certo?
Na minha perspectiva há coisas que sim e há coisas que não. Eu tenho a ideia que a música portuguesa criou qualquer coisa de típico, através das suas múltiplas influências, por isso nós temos a nossa característica do nosso som, que deve ser mantido. Lá está aquilo que eu dizia há pouco, o nosso som pode ser aventureiro, mas não pode perder a sua raiz. Aquilo que se verifica é que está a haver uma globalização e a música portuguesa está a ser comida pela Europa e pelos Estados Unidos. A nossa música tem muito mais riqueza e há que dizer às pessoas que se devem sentir orgulhosas daquilo que têm. Orgulho no bom sentido, de haver satisfação de mostrar aos outros aquilo que temos.
A formação superior em música ainda está aquém das expectativas em Portugal?
Talvez esteja. Mas penso que houve uma grande evolução. Depende do tipo de música e de expressão musical que o músico escolhe. Se tem a ver com música clássica, que exige uma componente técnica e literária muito forte, além do encontro com outros músicos, se calhar existe algum défice. Mas também temos uma certa maneira intuitiva de tocar a música que temos, que vem dos nossos encontros não só com o Oriente, mas com a nossa índole. Mas penso que tudo isto não é só aprendido nos conservatórios. No entanto, o aparecimento de Escolas de Artes, como a de Castelo Branco, é sempre importante. Não só por aquilo que os alunos lá aprendem, mas também pelo convívio e os encontros que são uma constante entre os estudantes. E muitas vezes é partir desses encontros que nascem muitas outras
coisas.
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