
GENTE & LIVROS
Vercors
“- Sinto-me feliz por ter encontrado aqui um homem digno. E uma rapariga silenciosa. É preciso vencer esse silêncio. É preciso vencer o silêncio da França. Agrada-me essa ideia. (…)
- Sim - , continuou a voz lenta e sussurrante - , é melhor assim. Muito melhor. Daí resultam uniões sólidas, uniões em que cada um conquista grandeza… Há um conto para crianças muito bonito, que eu li, vocês leram, que toda a gente leu. Não sei se o título é o mesmo nos nossos dois países. No meu, chama-se Das Tier und die Schöne, a Bela e o Monstro. Pobre Bela! O Monstro tem-na à sua mercê, impotente e prisioneira, e, a todo o momento lhe impõe a sua implacável e pesada presença… A Bela é altiva, digna, fez-se dura… Mas o Monstro é melhor do que aparenta. Oh! Não é muito civilizado! É desajeitado, violento e, ao pé da Bela tão requintada, parece muito grosseiro!… Mas tem um coração, sim, tem uma alma que aspira a engrandecer-se. Se a Bela quisesse!… A Bela demora muito tempo a querer. Contudo, pouco a pouco, no fundo dos olhos do carcereiro odiado, descobre um clarão – um reflexo onde pode ler-se a súplica e o amor. Não sente tanto a pata pesada, as cadeias da sua prisão…".
in O Silêncio do Mar

Jean Bruller nasceu em Paris em 1902. Começou por ser desenhador e gravador. Durante a II Guerra Mundial com a ocupação alemã da França, começa a escrever como forma de combate contra o nazismo. Junta-se à Resistência e passa a assinar as suas obras com o pseudónimo
Vercors.
O Silêncio do Mar é o seu primeiro livro, publicado na clandestinidade em 1942. Esta obra é dedicada ao Poeta assassinado Saint-Paul-Roux.
O Silêncio do Mar decorre numa provincia francesa durante a ocupação nazi. Um oficial alemão, Werner Von Ebrennac, músico em tempo de paz e guerra, vai viver para a casa de dois franceses. Como forma de resistência, os habitantes da casa – tio e sobrinha- encerram-se num silêncio absoluto. Durante muitas noites, o oficial desce até à sala onde os habitantes da casa passam o serão. Aí, entrega-se a monólogos sobre o seu ideal de futuro para a França e Alemanha: uma bela aliança. E entre os inimigos daquela casa crescerá um mútuo
respeito.
Eugénia Sousa
Maria F. Baptista
Novidades

DOM QUIXOTE. As Publicações Dom Quixote editaram o Dicionário de Expressões Populares Portuguesas de Guilherme Augusto Simões. Nesta obra estão contidos cerca de 50 mil vocábulos: arcaísmos, ditos, regionalismos, calão e gíria, frases feitas, lugares-comuns, curiosidades da linguagem… As palavras do escritor Teixeira de Pascoaes transmitem a verdadeira dimensão desta obra «A linguagem popular é uma florescência espontânea da alma em casamento com o próprio sentir e a paisagem. E é tão animada, que certas palavras, já mortas em dicionários, ainda vivem, cheias de infância, nos seus dizeres. Por isso, a linguagem popular é mais irmã do verbo divino que a linguagem dos letrados, é a voz do sangue e da terra. E as suas pitorescas expressões tão cheias das próprias coisas que traduzem! Como se vive nas suas frases…».
PIAGET. O Instituto Piaget publicou A Poluição dos Mares de Jean-Claude Lacaze. Esta obra é um alerta para o perigo da morte dos oceanos. Baseados na crença da infinitude dos mares, estes serviram para o Homem, de maneira arbitrária, como vazadores. As espécies marinhas foram utilizadas e comercializadas, por vezes até à extinção e no mar se descarregavam todo o tipo de resíduos. Felizmente, no presente, pensa-se de outra forma e este livro dá uma resposta para a salvação dos oceanos. Porque o destino da terra passa por o futuro do mar. Jean-Claude Lacaze é oceanógrafo, biólogo e director do Museum National d´Histoire Naturelle.
EUROPA-AMÉRICA. As Publicações Europa-América iniciaram a publicação da colecção Horrível. Vocacionada para os jovens, é constituída por três séries distintas História Horrível, Ciência Horrível e Cultura Horrível. Um grande êxito em Inglaterra, Os Miseráveis Romanos, Os Celtas Safados, Evolui ou Morre, Digestão Nojenta, Modas d‘Arrasar e Galáxia Marada são os títulos já disponíveis no nosso país. Os Horríveis conseguem ensinar de uma forma divertida. Com “horrores” de piada e “horrivelmente” engraçados, os mais novos adoram e os menos novos pedem emprestado.
ASSÍRIO & ALVIM. A Assírio & Alvim editou O Mabinogion, uma recolha de contos celtas escritos em língua gaulesa, no século XIV. As onze lendas heróicas contidas neste livro encontram-se reunidas nos manuscritos Llyfr Gwyn Rhydderch (O Livro Branco de Rhydderch) e Llyfr Coch Hergest (O Livro Vermelho de
Hergest).
Eugénia Sousa
BOCAS DO
GALINHEIRO
Scorsese:
Nova Iorque, sempre

Martin Scorsese está de volta à sua Nova Iorque. Desta vez com Por Um Fio (Bringing Out The Dead), adaptação do romance autobiográfico de um paramédico, interpretado por Nicolas Cage (na foto com Scorsese). Uma película entre Taxi Driver (1976) e Nova Iorque Fora de Horas(1985). Um filme alucinante, como alucinantes são as noites de N.Y., onde convivem a miséria e a exuberância, a solidão e, claro, o sofrimento. Para isso o lugar ideal para tudo observar é, segundo o autor, a ambulância de Cage, ele sim por um fio, até encontrar o seu anjo redentor, Patricia Arquete. Mais um grande momento de cinema deste cineasta maior. Seguramente uma das melhores fitas do ano.
Nascido em Nova Iorque, em Queens, a 17 de Novembro de 1942, numa família de origem siciliana., cedo se mudou para Manhattan, em 1950, para Little Italy, um bairro de italo-americanos, facto que marcou a sua obra. No cinema de Scorsese os personagens reflectem as memórias e vivências do realizador, visível não só nos temas abordados e nos personagens, mas até no seu grupo de colaboradores. Existe um grupo, quase, quase gang, uma família cinematográfica. Martin Mardick, que trabalhou com ele na curta-metragem de estudantes, It’s Not Just You, Murray (1964), será co-guionista em Mean Streets (1973), New York, New York (1977), American Boy (1978), uma cyrta-metragem e Raging Bull (O Touro Enraivecido, 1980), Thelma Schoonmaker, que havia montado a sua primeira longa-metragem, a partir de Raging Bull, montará todas as suas posteriores películas, Michael Ballhaus, que Michael Powell recomendou a Scorsese, é director de fotografia desde After Hours (Nova Iorque Fora de Horas); Robbie Robertson, dos The Band, que trabalhou com o realizador aquando de The Last Waltz (A Última Valsa, 1978) um filme sobre o último concerto daquela banda, e que desde essa altura passou a ser colaborador mais ou menos permanente no que à música diz respeito sabemos quanta importância Scorsese dá à música nos seus filmes. Lembre-se que Scorsese foi o supervisor da montagem do mítico Woodstock (1969), de Michael Wadleigh.
Quanto aos autores estamos conversados. Há um núcleo duro que o tem acompanhado desde sempre, dos quais não podemos deixar de destacar, pelo seu papel na filmografia do autor, Robert De Niro. O primeiro filme que vi de Scorsese foi exactamente com De Niro: Taxi Driver, claro. Daí para a frente tornei-me um incondicional dos dois, pois penso que o cinema de Scorsese deve muito aos autores ou ao contrário que, apesar de não ser o mesmo, vai dar ao mesmo. São personagens de uma energia incontrolável, explodindo a espaços, quando pensávamos que não poderiam atingir tal estado de violência, às vezes gratuita. È o taxista. Mas também é o La Motta, dento e fora dos ringues, ou esse supremo arquétipo que é o Max Cady de Cape Fear (O Cabo do Medo,1992), esse super remake da fita de J. Lee Thompson, onde De Niro é a incarnação do mal, quase nos fazendo esquecer a grande interpretação de Robert Mitchum na primeira versão. Mas, para que um autor chegue a este nível não chega só ser bom, o director tem que o ser também, senão não funciona. E, Scorsese é um excelente director de actores. Que o digam Harvey Keitel, redescoberto alguns anos mais tarde por realizadores como Tarantino ou Angeopoulos, Jodie Foster, Cybill Shepherd, Daniel Day-Lewis, Liza Minelli e outros que se transfiguraram nos sues filmes.
Mas, Scorsese é acima de tudo um cinéfilo. A sua obra apesar de diversa, tem a marca inconfundível de autor. É um cinema onde perpassam as angústias, o desejo de intervir e de mudar. Mas, acima de tudo é um cinema lúcido. Um cinema de quem sabe o que quer, mesmo em filmes onde são visíveis alguns dos fantasmas religiosos de Scorsese, lembramos a Última Tentação de Cristo (1988) e não podemos esquecer a sua educação católica, acompanhada por uma expulsão do seminário, ou os bandos da sua Little Italy que o levam a abordar o tema da Mafia em alguns dos seus filmes, claramente em Goodfellas (Tudo Bons Rapazes, 1990), mas presente noutros como Casino (1995), em suma, um cinema empenhado. Decididamente Scorsese não é um artesão, é um autor. Alguns dos seus movimentos de câmara, brutais, às vezes, longos e mansos, outras, são autênticos hinos ao cinema. E que dizer da forma como ele nos leva a ver a sua cidade, a cidade que nunca dorme, New York, New York? É com homens destes, que amam o cinema e nos fazem amá-lo, que o cinema é cada vez maior. Uma das características do cinema de Scorsese é a obsessão. A ele, seguramente leva-o a fazer cinema. A nós a vê-lo. Ainda bem que é assim.
Luís Dinis da Rosa
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