BOCAS DO GALINHEIRO
Citizen Kane: O filme
de Welles
Escrever sobre “Citizen Kane”, realizado em 1941, amiúde considerado o melhor filme de todos os tempos em várias votações por todo o mundo, não é tarefa fácil. Por outro lado, o seu carácter inovador, fez dele uma obra prima de referência a que é impossível resistir. Nunca uma primeira obra havia atingido tal marco. Nem um autor. Mesmo conhecendo-se a fulgurante carreira de Orson Welles no teatro e na rádio.
“Citizen Kane” surpreende logo desde a abertura. Primeiro, o resumo que é feito da intriga através dos títulos dos jornais, revelando a vida e a carreira de Kane, ou seja, os principais pontos de desenvolvimento do filme. Depois é a utilização múltipla e sistemática de flashbacks que conferem a “Citizen Kane” a estrutura de um filme de investigação, através da transmissão dos diversos pontos de vista das várias pessoas auscultadas pelo jornalista, mas também o facto de o próprio Welles se tornar narrador/testemunha quando na cena final nos dá o significado de Rosebud, mais uma vez num flashback que nos leva à sua infância, quando ele brinca na neve com o trenó onde se vislumbra escrito
Rosebud.
Noutra perspectiva, a técnica, sobressaem em “Citizen Kane” as profundidades de campo, cuja nitidez dos diferentes planos, o campo lateral mais vasto, é complementada por outra particularidade: a construção de tectos, inabitual nos estúdios. Os movimentos de grua parecem impossíveis, mais tarde em “Sede do Mal” (1958) abriria com outro inolvidável, os contrapicados são incríveis, a sublinhar as desconcertantes mudanças de pontos de vista de que antes faláramos. Golpes de génio num filme único que, pretensamente, retrata a vida do magnata da imprensa, William Randolph Hearst, um tycoon de poderes ilimitados, cujos ódios e rancores eram célebres. Foi dito na altura que Welles pesquisou os arquivos de Hearst e se inspirou na sua vida e personalidade para criar o megalómano Charles Foster Kane. A querela entre ambos foi levada a extremos inimagináveis, com Hearst a querer impedir a estreia do filme, o que só não conseguiu porque Welles ameaçou a RKO, que estava prestes a ceder, com a denúncia do contrato. Como represália Hearst proibiu os seus jornais de inserirem quaisquer críticas ou publicidade a filmes da produtora, situação que durou vários anos.
Estreado simultaneamente em Nova Iorque e Los Angeles, “Citizen Kane”, entusiasticamente recebido pela crítica, não teve a mesma recepção junto do público. Falou-se mesmo em fracasso. Aliás, começou aqui a saga de Welles: um génio eternamente incompreendido.
Nascido em Kenosha, no Wisconsin, a 6 de Maio de 1915, filho de mãe pianista e de pai inventor, desde muito cedo se interessou pelo teatro. Aquando da morte da mãe, tinha ele 8 anos, o pai, homem com o gosto pelas viagens, em algumas das quais levava o pequeno Orson, ocupou-se da educação do filho. E, é uma prenda do dr. Bernstein, um teatro de marionetas, que vai marcar o futuro de Welles: é nele que inicia as suas experiências de encenação. Por trás a influência omnipresente de Shakespeare. Diz a lenda que teria mesmo representado sózinho “Rei Lear” quando tinha 7 anos. Não admira então que seja no teatro que inicia a sua profícua actividade artística. Aos 10 anos representa a sua primeira peça no Marshall Field de Chicago. Em Madison faz parte do grupo cénico da escola como actor, cenógrafo e decorador. Entretanto conhece o grande Houdini que lhe abre as portas para outra das suas grandes paixões, a magia, e que vai moldar a sua personalidade de ilusionista, prestidigitador e
mistificador.
Criança precoce, aos 13 anos ganha o diploma universitário em letras. Dedica-se também à pintura, chegando a obter resultados notáveis no Chicago Art Institute. Aliás, é numa viagem à Irlanda, para aperfeiçoar o seu desenho que o teatro se lhe atravessa irremediavelmente no caminho. Entra para o Gate Theatre. Porém, não conseguindo autorização de trabalho em Londres, regressa a Nova Iorque onde conhece Katherine Cornell, uma das mais célebres actrizes americanas da época, que o contratou para a sua companhia. É o início do êxito e do reconhecimento público de Welles que, em Dezembro de 1934, conquista Nova Iorque com Romeu e Julieta. Entretanto funda o Mercury Theatre e inicia-se na rádio no programa March of Time. Apesar de o teatro continuar a ser a sua actividade principal, é na rádio que obtém o maior êxito e provoca o maior escandalo dos Estados Unidos com uma versão radiofónica de “A Guerra dos Mundos”. No dia 30 de Dezembro de 1938, pelas vinte horas, começa a ser transmitida a sua adptação da obra de H. G. Welles que provoca uma imparável onda de pânico nos Estados Unidos. Uma histeria colectiva, com suicídios, partos prematuros e fugas em massa para os campos. Quando a polícia irrompeu no estúdio, Welles continuou naturalmente o seu programa.
Era o wonder boy a dar largas à sua imaginação e às várias e perturbantes facetas da sua vida. Sempre com o toque de genialidade. São as fabulosas encenações teatrais, onde é também actor e onde passa Shakespeare de fio a pavio. No cinema são célebres os seus geniais filmes, como, “O Quarto Mandamento”(1942), “A Dama de Xangai”(1947) ou “Otelo”(1952), só para citar estes, tal como o são os seus projectos inacabados. Mas disso falaremos noutra ocasião.
Maldito em Hollywood, sucessivamente alvo de cortes orçamentais e de rupturas de contratos, ganhava como actor o que iria gastar nos seus filmes e projectos. Um génio incompreendido, mas um génio que também não fez muito para melhorar a sua imagem. Intransigente, convicto das suas potencialidades, tal como D. Quixote, sempre se bateu contra moinhos de vento.
A Welles voltaremos. É compromisso que se impõe. De “Citizen Kane” pode-se dizer que é o grande filme de Welles. Nunca uma primeira obra foi tão longe. Um filme de que tanto já se disse e tanto sempre fica por dizer. Os génios não se explicam. São.
Luís Dinis da Rosa
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