Director: João Ruivo    Publicação Mensal    Ano III    Nº30    Agosto 2000

 

Entrevista

MIGUEL ÂNGELO EM ENTREVISTA

Arquitecto no mundo da música


Formado em arquitectura, vocalista do grupo português Delfins, escritor, apresentador de televisão, actor de teatro, Miguel Ângelo apresenta mais uma tournée do grupo, que em 1984 fundou, os Delfins. Em entrevista ao Ensino Magazine, explica como consegue conciliar a música, com a televisão, a televisão com os livros, a animação com os trabalhos a solo, e os Delfins com tudo o resto.

É com o Grupo Delfins formado, e com o curso de arquitectura quase concluído que Miguel Ângelo participa no movimento Tropa Não, contra o serviço militar obrigatório. Um ano depois, já arquitecto, funda um atelier de arquitectura em Lisboa. Em 1990 solicita o estatuto de objector de consciência e presta serviço cívico, como arquitecto, na Câmara de Cascais. “Na altura para se ter o estatuto, tinha que se ser julgado, e lá fui eu com o meu advogado”, lembra. Hoje mantém-se contra o serviço militar obrigatório.

Em 1991, já com os Delfins como grupo de referência, funda, em conjunto com outros elementos ligados à música portuguesa, o projecto Resistência. “Um grupo inovador, que deu voz a músicas já conhecidas, mas com outros arranjos”. 1991 foi para Miguel Ângelo um ano importante. Além dos resistência, casa-se com Maria Farjoz e é pai pela primeira vez. A empresa “Um só Céu”, de audiovisuais, é o projecto que segue, em 1993, na companhia de Fernando Cunha. Mais tarde abre os estúdios de gravação. Depois da música, Miguel Ângelo aposta também no Teatro. E coloca a fasquia bem alta. Faz de Jesus Cristo, na peça de Gil Vicente, “Breve Sumário da História de Deus”. Uma experiência de que o cantor recorda com entusiasmo. 

A segunda parte da década de 1990 deu a conhecer Miguel Ângelo ao povo português, através da sua participação em diversos programas de televisão, como Chuva de Estrelas, Selecção Nacional, Miguel Ângelo ao Vivo ou Cantigas da Rua. É também neste período que começa a dar voz a personagens da Walt Disney, como Woody, do Toy Story, John Smith, do filme Pocahontas, e Hércules. Além disso começa também a adaptar canções para português, nos filmes animados. Já no final da década de 90 lança o seu primeiro álbum a solo, Timidez, e o seu primeiro romance, «A Queda de um Homem». “Calor” é o romance que segue, e para correcção está já um terceiro livro. Ensino Magazine foi falar com Miguel Ângelo em Oleiros, horas antes dos Delfins subirem ao palco do Dia do Concelho. Uma conversa com hora marcada, que ultrapassou em largos minutos o tempo solicitado. 

Como é que se é arquitecto e cantor?

Bem de arquitecto, neste momento, só tenho o grau e o cartão da Ordem dos Arquitectos, a quem continuo a pagar as quotas, às vezes com algum atraso. Desde 1991, quando saí da Câmara de Cascais, que não tenho uma ligação activa com a arquitectura. Tenho isso sim, uma ligação passiva, pois quando viajo gosto de levar a minha máquina fotográfica. Além disso tenho amigos meus arquitectos, pelo que me vou mantendo em contacto com essa área. Curiosamente, a Ordem convidou o grupo para fazermos uma actuação no Congresso Anual, que este ano se realiza em Évora. Se isso se vier a confirmar, vai ser muito bom, pois continua a existir uma ligação forte entre todos.

Essa experiência na Câmara de Cascais surge na sequência de um pedido seu de objecção de consciência, para não cumprir o serviço militar...

Eu terminei o curso, e durante um ano tive uma experiência utópica, com uns colegas meus, de abrir um atelier independente. Ainda estivemos um ano a trabalhar e concorremos a alguns concursos completamente sonhadores, como para a nova sede da Associação de Arquitectos do Porto. Foi divertido, mas chegou a uma altura que era só dinheiro a sair...

Então e o estatuto de Objector de Consciência?

Quando eu estava a estudar fui metendo sucessivos adiamentos ao serviço militar obrigatório e pedi também o estatuto de Objector de Consciência. A ida para a Câmara de Cascais é uma feliz coincidência, pois a Câmara estava a precisar de pessoas e estava disposta a integrar gente, de acordo com o novo plano de distribuição dos objectores de consciência, e acabei por ir para lá. Como eu já tinha o curso aproveitaram-me para fazer o trabalho de arquitectura. 

Tropa obrigatória não. Porquê?

Porque penso que esses serviços devem ser voluntários. Ontem vi o filme do Mel Gibson, o Patriota, onde ele aparece com a bandeira americana nos dentes até ao fim da fileiras. Os americanos é que têm jeito para essas coisas. As pessoas têm que ser livres e saberem por quem é que querem dar a sua vida, se é pela sua família, se é pela sua pátria, se é pelo seu emprego. Hoje em dia quando a guerra existe é feita por tropa especializada, e não com a chamada tropa macaca. Há outros países que aproveitam esses jovens para outros serviços cívicos. Porque ir à tropa como muitos jovens vão é uma perda de tempo. 

Daí ter solicitado o estatuto de objector de consciência?

Eu sempre pensei assim. Sou um pacifista e não acredito no uso da violência. Na altura o Estatuto era conseguido no Tribunal. Fui obrigado a ter um advogado para me defender... foi uma coisa que agora, vista a alguns anos de distância, mete uma certa graça.

Mudando de assunto, os Delfins estão a comemorar 16 anos de existência. Como é que classifica a evolução do grupo desde a década de 80 até hoje?

É muito tempo. Mas continua a ser divertido. Para se seguir esta vida é preciso se gostar bastante. Continua a ser engraçado virmos, por exemplo a Oleiros, aparecer a banda, lançarem foguetes, e nós pararmos de ensaiar, durante um bocadinho. Continuo a gostar de chegar às terras e conhecer gente nova. Também é bom, antes de algumas actuações, termos tempo para ir, por exemplo à praia Fluvial do Malhadal, como hoje aconteceu. Se não tivesse esta vida, não poderia ter estes luxos.

Que influência é que o grupo sofreu?

Muitas, muitas. Os Delfins não são um grupo que nunca muda. Já muita gente passou pelo grupo. Musicalmente já tivemos muitas variantes, desde música para teatro e para peças imaginárias, música mais pop. O grupo acaba por ser um laboratório de pessoas que gostam muito de música.

1991 foi um ano importante para o Miguel Ângelo. Casa-se, é pai pela primeira vez e funda os Resistência?

É verdade foi um ano em que aconteceu muita coisa. Ser pai é sempre bom. E eu, por acaso já consegui ter aquela tripla, que é a do filho, da árvore e do livro... Foi um ano importante, a Resistência conseguiu mudar muito na música portuguesa. Aproveitámos canções de outros grupo, e grandes cantores, como Zeca Afonso, e conseguimos levar essas músicas a gente muito jovem.

E porque é que esse projecto não continuou?

Porque estávamos todos muito ocupados, com os nossos projectos pessoais. Os Madredeus começam a ter uma agenda muito sobrecarregada no estrangeiro, os Xutos regressam em força e os Delfins também estavam a preparar um disco duplo. Os Resistência acabam por ser um pouco como o D. Sebastião, que num dia qualquer, não sei se com nevoeiro ou não, vão voltar.

O teatro é outra das suas grandes paixões, como é que se sentiu na pele de Jesus Cristo?

Foi incrível! Penso que nenhum de nós tinha conseguido fazer aquilo se não fosse o apoio da companhia e de grandes nomes como Anna Paula, João Vasco, António Marques, Zita Duarte, e do encenador Carlos Avilez. Pessoas que nos apoiaram, durante três meses, de uma forma fantástica, sem aqueles preconceitos que muitas vezes existem em Portugal, de que estamos a pisar um território que é deles. Era um ambiente diferente, talvez porque todas aquelas pessoas eram de Cascais e eu lembrava-me deles noutras peças de teatro, apresentadas ainda no antigo Picadeiro.

Depois veio a televisão. RTP e SIC, qual dos projectos foi mais aliciante?

Foram vários. Como júri estive na RTP e depois na SIC, no Chuvas de Estrelas. Mais tarde apresentei o Cantigas da Rua e o Ao Vivo. Para mim, o Ao Vivo, que apresentava grupos novos e ao vivo, foi o mais interessante. Ainda hoje, quando revejo esses programas, sinto-me emocionado. Houve ali momentos que nunca tinham existido na televisão portuguesa. Não sei se era dedicado a uma minoria, ou não, mas foi um programa diferente. Agora se compararmos o Ao Vivo com o Cantigas da Rua, que era um programa popular, verificamos que este teve mais sucesso. Muitas pessoas quando me encontram ainda perguntam pelo Cantigas da Rua, como se não tivessem passado alguns anos. Mas o Ao Vivo daqui por alguns anos vai ser solicitado pelas pessoas, pois não nenhum programa onde as pessoas possam tocar ao vivo, sem play back. Se não teve audiência, não teve. Mas os miúdos se não fossem obrigados a ir à escola, se calhar também não iam estudar.

Como é ser o John Smith do Pocahontas?

Eh! Esse foi dos papéis mais fáceis que fiz em animação. Porque os outros que fiz, como o Woody, do Toy Story, que era nada mais nada menos que dobrar a tropelias vocais do Tom Hanks, foram bem mais difíceis. Lembro-me que as gravações eram feitas com os fones colocados, a saltar como o boneco saltava. Fui muito difícil, mas engraçado, e voltando àquela pergunta de ter sido pai, cada vez me deu mais prazer fazer estes papéis por causa dos meus filhos. É interessante teres isso em vídeo, e eles verificarem que têm a voz do pai na boca do Jonh Smith, do Wody ou do Hércules. 

O primeiro disco a solo chama-se Timidez. O nome tem algum significado especial?

Tem... é o primeiro disco a solo. É um passo muito arriscado. Tentei fazer um disco diferente dos Delfins, mais introspectivo, mais solitário. As letras tinham a ver mais comigo, do que como acontece nos Delfins, onde quando escrevo me tento pôr na pele das sete pessoas da banda. Por isso há uma maior timidez em avançar com um projecto destes.

Como é concilia todos estes projectos?

Com um bom programa de software da Microsoft... Não, estou a brincar! É uma questão de aproveitar o tempo. De alguns anos a esta parte deixei de fazer aquela vida nocturna, social, que toda a gente pensa que as figuras públicas fazem. E fazem, mas até dada altura. Depois escolhem, ou continuam a fazer essa vida, ou preferem avançar com outros projectos. Eu também fiz durante algum tempo a vida nocturna, mas há alguns anos que procuro trabalhar nesses projectos.

No seu livro a Queda de um Homem, afinal quem é que cai?

Há uns dias, uma rapariga, por e-mail, perguntava-me: Mas porque é que nos teus livros morre toda a gente, os homens estão sempre a desmaiar, está sempre tudo a cair. Eu penso que é uma tendência artisticamente suicida, no sentido da vertigem, para tentar por sempre as personagens em situações de risco. É importante na ficção lidar com situações, que nos podem vir a acontecer e empurrar as personagens para sabermos quando é que caem. Tanto «A Queda de um Homem» como «O Calor» vivem essas relações, que têm a ver com vida, sentimentos, droga, morte, tecnologias, com mergulhos em buracos negros que desconhecemos.

Projectos futuros...

Ao nível do Grupo, este é o ano do 7. Este disco é quase um disco de um grupo alter-ego dos Delfins, e daí escrevermos sempre Delfins com 7. Em Setembro vamos fazer uma surpresa, que é um programa de televisão. Além disso, estou a terminar o meu novo livro, que sairá no início de 2001. Estou a começar a escrever outro e além disso tenho outros projectos a nível de televisão que não vão acontecer este ano, porque a tournée do grupo vai prolongar-se.

 


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