Director: João Ruivo    Publicação Mensal    Ano III    Nº26    Abril 2000

 

Editorial

Utopias & Realidades


Nos finais do passado mês de Março, a Associação Nacional de Professores realizou, em Castelo Branco, as IX Jornadas Pedagógicas – III Transfronteiriças. Sala cheia, gente interessante e interessada, debates polémicos, enfim, nada a que aquela Associação não nos tenha já habituado.

Como é sabido, este ano andámos a tentar desembrulhar as relações entre as utopias e as realidades que envolvem a educação. Como também nos calhou parte da agradável tarefa de tentar animar uma das sessões, permitam-nos o abuso de escrevinhar meia dúzia de linhas sobre o assunto.

Sendo assim, talvez valha a pena começar por dizer que os portugueses não foram apenas os criadores desse singular e intraduzível sentimento que dá pelo nome de “saudade”.

Para que conste, e uma vez mais se registe, terão também sido responsáveis pela criação do sonho, do encantamento e do desejo que se convencionou designar por UTOPIA – expressão que exercita a vontade de desejar para fazer - ou, como diriam os clássicos gregos, a palavra que, para eles, significava “A parte nenhuma”, o que quase equivale a dizer que Utopia também será, se assim o quisermos, “Aparte de tudo e de todos”.

Não sei quantos o sabem, por isso me atrevo a relembrá-lo, que Tomás Morus no seu livro que intitulou de “Utopia”, e que viu a luz do dia pelo já ido e longínquo ano de 1516, nos revela uma extraordinária personagem, de seu nome Rafael Hitlodeu, nascido e criado em Portugal, mas que cedo abandonou família, fortuna e a própria pátria para percorrer as sete partidas do mundo. E é precisamente este português que, num casual encontro com Tomás Morus, em Antuérpia, nos inícios do século XVI, lhe revela factos e relatos de usos e costumes de povos desconhecidos do antropocentrismo europeu de seiscentos.

Factos e relatos esses que levaram Tomás Morus a dedicar a segunda parte da sua obra à descrição pormenorizada de uma ilha imaginária, a que deu o nome de Utopia (a tal “parte nenhuma”), ilha essa em que a organização social e a relação do Homem com o Homem eram de tal modo tão perfeitas, de tal modo tão “ideais”, que deveriam ser prosseguidas por todos os governos que quisessem estar ao serviço dos seus povos.

Dificilmente melhor motivação poderia justificar o facto de se falar sobre a “Utopia e a Realidade na Formação de Professores”. Sobre a utopia, esse “sonho que comanda a vida”, essa utopia que é, ainda, a escola que não temos, mas que desejamos. E talvez também por isso possamos afirmar que o que ontem era a utopia da formação de professores, hoje seja a realidade das nossas escolas de formação. Logo, o que hoje deveria ser a realidade renovadora, constitui-se como mera utopia para muitos formadores e professores, que nem reconhecem a estagnação dos seus pressupostos, hábitos e procedimentos formativos.

É que a utopia deve resultar da interiorização de representações e de expectativas positivas quanto aos processos de mudança permanente, que o futuro já nos anuncia, no curto prazo de meia década, em que os professores serão obrigados: a mudar de saberes; a mudar de modos de actuação; a mudar de áreas disciplinares; a mudar de ciclos de ensino; a mudar de posturas quanto aos modos de eles próprios aprenderem; a mudar, em consequência, o conceito restrito e restritivo que hoje domina quanto às valências de formação dos professores.

O reconhecimento de tais mudanças deve conduzir à produção de profundas alterações nas instituições formadoras de educadores e de professores, porque são os formadores que determinam o que vão saber e o que vão fazer os futuros professores. E, nesta matéria, há muitos formadores que têm medo de que os futuros docentes, venham a saber e a saber fazer aquilo que eles não sabem e nem pensam poder um dia saber fazer.

Daí que possamos afirmar que, quanto à formação de docentes, a expectativa da incerteza é maior do que o conjunto de certezas discursivamente assumidas. E que, inversamente, é a crença na mudança que poderá vir a dar de novo sentido às incertezas que acompanham os processos de sobrevivência profissional. Incertezas que acompanham esse conceito, ainda fluido, da aprendizagem permanente, da reconstrução e da reestruturação dos saberes.

As últimas investigações sobre educação permitem concluir que, cada vez mais, quem escreve sobre o ensino, quem propaga e “vende receitas”, que têm tanto de milagrosas quanto de irrealistas, quanto ao sucesso profissional dos educadores e dos professores e quanto ao sucesso na aprendizagem dos alunos, são aqueles que já não ensinam, que há muito deixaram de ensinar e investiram na investigação em centros de ensino superior, cada vez mais distanciados da realidade concreta das vivências quotidianas dos professores e das escolas.

Logo, a realidade dos receituários de formação sugeridos pode estar demasiado distante das necessidades formativas dos docentes e da dose necessária de utopia para as poder implementar. Pelo que se torna por demais evidente a urgência em quebrar esse ciclo vicioso que se foi instalando entre os práticos que não produzem teoria e os teóricos que, progressivamente se distanciaram da prática.

Para que tais práticas formativas passem pelo processo alquimista de evolução gradual entre a utopia e a realidade não basta mudar apenas a cultura profissional dos docentes. Se reconhecemos que os professores necessitam de ajuda e formação acrescida, então implementem-se as condições, os meios e as redes de apoio para que nas escolas se sinta, de facto, que existem projectos consistentes e coerentes de formação contínua. É que sem alterar as condições de trabalho, a cultura organizacional de cada escola e as expectativas sociais dos docentes, a formação nem é utopia, nem é realidade: é, pura e simplesmente, ficção!

Manter uma política de inovação e de renovação, significa que a utopia tem que constituir-se em algo de preventivo contra o pragmatismo rudimentar e grosseiro. A educação é, simultaneamente, um projecto de cultura, de humanização, e de solidariedade. O que exige uma grande abertura aos novos horizontes, às novas solicitações, às novas oportunidades que o futuro já nos oferece, para que não sejam, mais tarde, e uma vez mais, oportunidades historicamente perdidas. É por isso que, para os professores, a utopia deveria ser uma das formas de dar sentido à realidade do que fazem, clarificando a dimensão social e ética das suas práticas.

O professor deve ter expectativas ajustadas às suas possibilidades. Apesar dos êxitos e dos fracassos se alternarem na sua actividade, ele deve manter expectativas positivas e entusiasmo. É necessário manter a força das ilusões, apesar dos fracassos circunstanciais. É necessário ser céptico, mas sem ser dogmático, ser moderado, mas sem ser fraco e, sobretudo, nunca recusar a verdade comprovada.

Alterar as causas geradoras de sintomas propiciadores da resistência à mudança é um desafio, mas também faz parte da utopia que nos alimenta e nos motiva a estar presentes sempre que uma voz nos desafia.

Prosseguir os caminhos da utopia, é dar um chuto, valente e certeiro, na solidão profissional que acompanha o desenrolar dos dias de muitos professores e educadores.

Agarrar utopia, é romper com a certeza das incertezas, na certeza da busca da incerteza maior, que é aquela que sempre acompanha o renascer do novo e a construção da infinita mudança.

Abraçar a utopia, é aprender a dar, rasgando do dicionário as páginas que nos explicam como se lida com a dúvida que acompanha o egoísmo e a bajulação.

Sejamos utópicos, apenas por acreditar em que acreditamos. Apenas porque abrimos as portas, de par em par, ao impossível e ao inimaginável.

João Ruivo
ruivo@rvj.pt

 


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