BOCAS DO GALINHEIRO
Jazz e cinema

O cinema tardou a acordar para o jazz. Temos para nós que foi Bertrand Tavernier com À Volta da Meia-Noite que nos deu o verdadeiro filme sobre Jazz. Mas, a ele voltaremos.
No dealbar do século, enquanto o cinema dava os primeiros passos, uma nova forma musical que se iria chamar, sabe-se lá porquê, JAZZ, balbuciava os primeiros acordes. A dificuldade para se imporem foi enorme. A caminhada, fizeram-na em paralelo. Quase sempre de costas voltadas.
O crítico Juan Claudio Cifuentes, do “Jazz Entre Amigos” de boa memória (porque é que será que os bons programas de televisão acabam sempre?) semanalmente no 2 da espanhola, dizia que o cinema utiliza o Jazz de três formas: em histórias em que aparecem músicos de Jazz, em cuja classe se encontram muitos filmes negros americanos; os filmes em que o Jazz é utilizado como banda sonora, e estes são às centenas, e por último os filmes em que o Jazz é o objecto da história, ou seja, os filmes de Jazz, estes sim, espécie rara.
O cinema musical viveu, paradoxalmente, quase sempre à margem do Jazz, apesar de lhe podermos chamar a música americana por excelência. Salvo alguns documentários pouco divulgados entre nós, nunca houve, até há poucos anos, um verdadeiro encontro
cinema/Jazz.
David Mecker, na sua obra “Jazz in the movies”, aponta, até 1977, mais de dois mil títulos, a grande maioria curtas metragens de 2 ou 3 minutos. O cinema pouco ganhou, mas para os amadores de jazz o gozo é enorme, ao contrário de alguns decepcionantes filmes com Jazz. Um grupo de músicos brancos, uma cave cheia de fumo, pares enlaçados sob uma iluminação a descair para o estravagante, era assim, mais coisa menos coisa, que o cinema costumava filmar o Jazz. Convenhamos que é pouco.
Outubro de 1927. A América conhecia um período de grande prosperidade económica. O Jazz deixou New Orleans e os seus ritmos instalaram-se em Chicago e Nova Iorque. Foi a Era do Jazz, filmada pelo actor/cineasta Jack Webb, em 1955, no seu filme Pete Kelly’s Blues. Lá apareciam Peggy Lee e a Rainha, Ella Fitzgerald, que murmurava um blues admirável, Hard Hearted
Hannah.
Oficialmente o primeiro filme sonoro foi O Cantor de Jazz, de Alan Crosland (1927). Se esta obra é uma marco na história do cinema, para os amadores de Jazz foi de decepção e lamento: o cantor Al Jolson, aparecia de cara enfarruscada imitando os cantores negros que nessa altura não tinham lugar na sétima arte, a não ser como criados ou coisa parecida!
Após anos de hesitação o Jazz começou a aparecer nas bandas sonoras. Primeiro episodicamente, depois como suporte total, nomeadamente a partir de 1955. Por vezes esta forma musical era utilizada para acentuar a violência da narrativa. Senão vejamos. Em O Homem do Braço de Ouro (1955), de Otto Preminger, em que se aborda frontalmente o tema da toxicodependência, a combinação da música com a narrativa, dando ao Jazz um papel de protagonista absoluto, á soberba, tal como a banda sonora de Quero Viver (1958), de Robert Wise, sobre a condenação à morte de Barbara Graham, com músicos como Gerry Mulligan ou Shelly Manne, entre outros. Em Anatomia de um Crime (1959), de Preminger, história de uma violação, a música é de Duke Ellington que a toca com a sua fabulosa orquestra. Em Homens no Escuro, do mesmo ano, Robert Wise socorre-se da música do Modern Jazz Quartet para ilustrar a história de um assalto não muito bem sucedido.
Também os cineastas europeus utilizaram o Jazz, não como música de acompanhamento, mas tirando partido do seu ritmo e sonoridades. Bastaria lembrar Des Femmes Disparaissent (1959), de Eduardo Molinaro, que se socorre dos Jazz Messengers, de Art Blakey, ou Louis Malle que dirige em 1957 Fim de Semana no Ascensor, com música de Miles Davis, composta directamente para a imagem. Uma excelente partitura que ilustra com eficácia um caso de adultério e crime. Em Portugal, Fernando Lopes realiza em 1964 um dos mais sólidos filmes do chamado Cinema Novo : Belarmino. A música é de Manuel Jorge Veloso. Muito Jazz para a história do pugilista Belarmino Fragoso, numa entrevista do
Baptista-Bastos.
Hollywood, sempre a pensar nos êxitos de bilheteira, descobre o filão das biografias de músicos de Jazz. Filmes como The Fabulous Dorseys, A História de Glenn Miller, A história de Benny Goodman, ou Um Homem e Dois Destinos, de Michael Curtiz, vagamente inspirado na vida de Bix Beiderbecke, ou Lady Sings The Blues, de Sidney Furie com Diana Ross a fazer de Billie Holliday, são alguns dos filmes que só passaram à história pela figura dos biografados.
Porém o tal salto, dos filmes com Jazz para os filmes sobre Jazz, deu-o sem dúvida Bertrand Tavernier, em 1986, com Round Midnight (na foto). O título, só por si, um tema de Thelonious Monk, emana jazz por todos os poros.
Inspirado no livro de Francis Paudras “La Dance des Infidèles”, sobre a vivência do autor com o pianista Bud Powell, o seu “Deus”, Tavernier, ele próprio um apaixonado pelo Jazz, constrói uma história toda ela sobre Jazz, com música Jazz, cuja lista é brilhante, numa banda sonora de Herbie Hancock que, tal como os restantes músicos, tocam em directo no filme. Um regalo para a vista e para os ouvidos.
A personagem principal, Dale Turner, uma simbiose de Bud Powell e Lester Young, duas lendas da música negra, é interpretada pelo grande saxofonista Dexter Gordon que se revela aqui, principalmente pelo grande à vontade que exibiu e pela forma magistral como domina o filme, um excelente actor, ao ponto de ser nomeado para o Oscar. É obra!
Tavernier tentou, e conseguiu, dar-nos um retrato fiel do que foi a vivência dos músicos norte americanos na Europa do pós-guerra.
Clint Eastwood, outro confesso apaixonado do Jazz, useiro e veseiro em incluí-lo nas suas bandas sonoras, deu-nos o também excelente Bird, de 1988, uma audaciosa e integra biografia de Charlie Parker. Eastwood foi muito criticado por ter mantido os solos de Parker e a secção rítmica ter sido gravada por músicos actuais. Não foi compreendida a sua intenção de não utilizar os temas originais, com uma sonoridade muito datada, face à fraca qualidade das gravações dos acompanhamentos na altura. Fica-nos, e bem, o retrato de um músico de excepção, com uma vida inversamente proporcional ao seu talento.
Tal como Round Midnight, filme em que qualquer semelhança com a realidade não é pura coincidência.
Luís Dinis da Rosa
com Joaquim Cabeças
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